sábado, 21 de julho de 2012



NOITE FRIA


Esta noite fria e misteriosa
Faz-me refletir olhando estrelas
Que brilham em firmamentos
Distanciados do tempo não vivido,
Do tempo que não pude contar,
Porque as horas desmarcaram o encontro
Da tua presença distante.
Esta noite fria me faz lembrar amores desfeitos
Que vagueiam na boemia das madrugadas.
As sombras da noite amedrontam
O poeta desolado, sem inspiração
Para fazer um verso, que seja, à amada que partiu
Sem, ao menos, dizer adeus.
A noite me assusta com fantasmas
De amantes cambaleantes
Que vagueiam na embriaguez
Da minha memória.











                                                    PEGUEI UM “ita” NO NOR...DESTE


Aos poucos Maceió ia se distanciando, perdendo-se no horizonte, enquanto o navio entrava em mar aberto no rumo do Sul. O destino era o Rio de Janeiro. A bordo estava eu, “marinheiro de primeira viagem”. Ali, num dos “itas” da Cia. Nacional de Navegação Costeira, que competia, naquele tempo, com a Cia. de Navegação Lloyd Brasileiro, na costa brasileira, de Manaus a Porto Alegre. E até mesmo para a América do Norte. Se não me falha a memória, era o Itapagé ou o Itanagé, da Costeira, como era chamada, em que eu viajava. No cais, na minha despedida, ficaram meu primo-irmão Francisquinho (o “imortal” Francisco Valois, da Academia Alagoana de Letras) e o nosso tio José de Góis, que, à época, trabalhava num banco particular, em Maceió. Não esqueci, até hoje, os olhos marejados do amigo primo, que foi filho único, considerando-me, assim, um irmão. Não teve a infância com seus pais, que faleceram muito antes da sua adolescência. Ficou sob os cuidados da nossa avó e do nosso tio, que o criaram com muito rigor, castrando-lhe a liberdade que eu e outros meninos tivemos na nossa pré-adolescência, convivendo com os nossos pais, mais liberais em algumas atitudes. Considerava-me, pois, um irmão, eu, que o arrastava para certas “aventuras” concernentes à nossa idade.

Era final do mês de junho de 1953. Não me recordo o dia exato em que embarquei, com o coração pesado de lembranças e saudades, mas com a vontade única, ansioso mesmo de ter um emprego, livrando-me, assim, da dependência financeira dos meus pais. Infelizmente não tinha sido aprovado no vestibular para medicina no Recife, na Universidade Federal de Pernambuco. A minha mãe, no que lhe era possível, dava-me algum dinheiro para eu não ficar de bolso “furado”. O meu pai, por sua vez, era indiferente a que eu, e os irmãos necessitassem com relação a dinheiro. Era, posso dizer, meio “usura”. Providências, como esta e outras, eram tomadas por dona Alfredina, minha inesquecível mãe.

Então, talvez por sugestão dela, o irmão Afrânio, que já trabalhava havia mais tempo na Direção Geral do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, conseguiu, não sei com quem, a minha nomeação para o quadro de Portaria, para servir em São Paulo. Assim, não era uma aventura a que eu iria me submeter. Não ia eu à procura de um meio de vida ali, tão distante, como já fizeram tantos nordestinos necessitados, porque já levava na bagagem um documento que me credenciava, me dava o direito de assumir uma ocupação no Banco do Brasil. Naquele ano, em 20 de março, falecia Graciliano Ramos, escritor alagoano, autor de Memórias do Cárcere e outras obras consagradas. Nascia, no dia 03 daquele mesmo mês, o “galinho de Quintino”, o nosso Zico, ou melhor, Arthur Antunes Coimbra, um dos melhores jogadores brasileiros, atuando no Flamengo, esse time que tem a maior torcida do Brasil. Outros fatos aconteceram, que junto aos que experimentei comigo mesmo. No dia 15 de agosto daquele ano, completaria eu 22 anos, pois sou de 1931. Hoje, nos meus 79 anos, admiro a minha coragem e disposição de ter enfrentado aquele meu início de trabalho num “mundo” completamente estranho, que era São Paulo para mim, vindo da distante Alagoas, sem qualquer experiência de vida e de trabalho. Mas Deus me concedeu força e coragem. Fui, vi e venci, quase imitando o romano Julio César que disse: veni, vidi, vici (vim, vi e venci).

O vapor Itapagé, ou Itanagé, singrava lentamente as águas azuis do nosso oceano Atlântico, umas vezes sereno, sem qualquer oscilação, outras vezes obedecendo ao balançar do mar, quando os ventos marinhos açoitavam as águas, deixando-me enjoado, como se estivesse saído de uma rodada de mistura de bebidas alcoólicas, vendo o mundo girar ao meu redor, sacudindo o meu estômago quase vazio, já que havia rejeitado de pronto as iguarias, não muito convidativas, que ofereciam na sala de refeições para o jantar. Ali se iniciou o meu sofrimento, acrescido da saudade dos entes queridos que se perderam no horizonte da minha imaginação. A tristeza da minha mãe, seus olhos cheios de lágrimas era um filme constante rodado na tela do meu pensamento, quando a abracei, deixando o lar em que vivia até então, lá no interior do meu Estado.

A bordo, não tive ideia do tempo decorrido de Maceió a Salvador. Estava, como se diz, fora de órbita. Devia ter sido um dia, dois. Não sei bem. Ali estava eu, prostrado, quase em coma, numa espreguiçadeira, no convés, onde passei a noite. Estava, na verdade, sem noção do tempo. Não tive condições físicas, na primeira noite, de entrar no camarote. Das vigias (janelas), vendo o mar oscilando para a direita e para a esquerda, sem dúvida, o meu tormento haveria de aumentar, preferindo, pois, permanecer no convés, donde ainda dava para vislumbrar a grandeza do firmamento ainda claro e a chegada, em seguida, da noite salpicada de estrelas, inúmeras cintilantes como diamantes. O cheiro constante de tinta a óleo, para conservação de peças de ferro que compunham boa parte do navio, para evitar a corrosão da maresia, contribuía para o meu estado. Hoje, bem diferente daquela época dos anos 50, os transatlânticos devem ser construídos de materiais, inoxidáveis, sem aquela necessidade premente, obrigatória mesmo, de pintar, semanalmente talvez, as esquadrias, corrimãos, degraus etc, que compunham partes dos navios de passageiros e navios mercantes.
O “ita”, em que eu viajava, um dia e meio depois, atracou no Cais do Porto de Salvador. A Bahia já era famosa, mesmo sem se falar que foi a cidade-mãe do Brasil, quando ali desembarcaram, sob o comando do português Pedro Álvares Cabral, os nossos primeiros colonizadores. Estava eu na Bahia de Rui Barbosa, de Castro Alves. A terra de Jorge Amado, autor de Capitães de Areia, de Dona Flor e Seus Dois Maridos e outros romances. Dorival Caymmi já tinha fama, não só por ser o berço também do grande compositor e cantor, que em 1953 (ano que parti para o Sul) tinha 39 anos de idade. Estávamos em Salvador das baianas do Pelourinho, com suas roupas características, de turbantes e saias rodadas com estampas coloridas, por trás dos seus tabuleiros vistosos de vatapás e acarajés. O Elevador Lacerda já era ponto turístico para aqueles, ainda poucos, que visitavam Salvador. Alguns passageiros embarcaram ali, destinados, por certo, ao Rio de Janeiro. Não sei quanto tempo o nosso navio ficou ali atracado. Eu ainda estava fora de órbita, como disse, vendo o mundo girar, entregue ao enjoo que me consumia. Mas alguém, lembro-me que era uma mulher, dos embarcados, viu o meu estado deplorável, deitado como estava numa espreguiçadeira, sem qualquer ânimo, e me ofereu um comprimido, que só tempos depois tomei conhecimento do nome do medicamento, que era “Dramin”. Um “santo” remédio. Dali, até atracar o navio no porto do Rio de Janeiro, mesmo se acontecessem oscilações no mar dos Abrolhos, segundo diziam, aconteceriam, nada mais senti. O mar, felizmente, esteve sereno naquela região.

O dia estava clareando quando entramos na bela Baía da Guanabara. Conferi o meu relógio. Passava das 6 horas da manhã. O céu da Cidade Maravilhosa estava mesclado de dourado, pintado pelos primeiros raios do sol. O navio aproximava-se do Cais do Porto e da vigia do meu camarote vi, pela primeira vez, parte da beleza do Rio, tendo ao fundo um edifício de vários andares, que depois vim saber que se tratava do Edifício “A Noite” (“...construído em fins dos anos 20, com a nova tecnologia do concreto armado, é considerado o introdutor da arquitetura em estilo artdecó no Brasil. Foi o primeiro arranha céu da cidade e em seu projeto foi usado além do calculo estrutural, a ação dos ventos sobre a estrutura. Em seu lugar havia o casarão do Liceu Literário Português, transferido para o Largo da Carioca...”). No prédio, depois vim tomar conhecimento, entre outras atividades, estava instalada a famosa Radio Nacional, que se escutava, com prioridade, em todo território brasileiro face aos seus excelentes noticiários, bem como os programas artísticos, destacando-se o Programa César de Alencar, o de Calouros de Ari Barroso e de Jararaca e Ratinho, que muito nos divertiam com as suas irreverências, incluindo críticas com “certos” políticos da época. Atracado o Itapagé (ou Itaberá), os passageiros estavam liberados para o desembarque. E lá fui eu também em meio aos demais descendo a escada de acesso à terra firme do Cais da Praça Mauá. Senti-me “um estranho no ninho”, diante da cidade grande, num mundo diferente para mim, longe, pois, do meu Estado natal, dos meus familiares, da bem mais tranqüila Maceió, que ficou bem longe. Era hora de respirar fundo e enfrentar a região sudeste do Brasil, mesmo sem experiência, nos meus 22 anos de idade, quanto ao modus vivendi da gente carioca e, dois dias depois, do povo de São Paulo (Capital), para onde segui para trabalhar no Banco do Brasil. No Cais, motoristas de táxis disputavam os desembarcados, se oferecendo para uns e para outros (incluindo-me) para nos levar aos nossos destinos no Rio. Afinal, com três companheiros de viagem, ficou ajustado determinado preço, que não lembro o valor em cruzeiros (moeda da época), com um taxista, para o nosso itinerário. Fiz, assim, um ligeiro passeio turístico pela cidade. Algumas paisagens do Rio me encantaram. O meu destino, sendo eu o último, foi o bairro de Botafogo, onde residia um irmão, que se justificou por não ter ido à minha chegada porque “se confundiu” com a hora que o navio chegaria. Engoli a seco sua “justificativa”. O tempo, naquele mês de julho, estava frio e, com a umidade, muito me incomodava. Devia está na casa dos 23° graus, o que nunca experimentei em Alagoas. Mas, coisa bem pior provei em São Paulo, quando ali desembarquei dois dias depois que deixei o Rio de Janeiro. Na Rodoviária, na Capital dos paulistas, amarguei a mesma decepção. Um conhecido, que já trabalhava no Banco do Brasil, por sinal, vindo também de Alagoas, já vivendo ali por algum tempo, não me esperava, como prometido em correspondência que trocamos. Depois de percorridos os 400 quilômetros, que ligam o Rio a São Paulo, na famosa Via Dutra, o ônibus chegou à Rodoviária, encostando na parada determinada para os veículos interestaduais. O frio, em São Paulo, nos seus quase 800 metros de altitude, incomodava-me sobremaneira. Devia andar pela casa dos 18 graus, que para mim, vindo do Nordeste, era um castigo. Os passageiros se dispersaram entre muitas outras pessoas, em busca, assim, dos seus destinos, apanhando táxis ou até mesmo pegando alguns ônibus que, com muita eficiência, circulavam para vários pontos da cidade. O meu destino foi o bairro do Jabaquara, na Avenida do mesmo nome, onde se situava a agência do Banco do Brasil em que eu tomaria posse, numa quarta-feira, naquele distante 8 de julho de 1953. O taxista ajudou-me a procurar uma hospedaria. Nem nome de algum hotel ou pousada trazia comigo. Confiei no amigo, que, infelizmente, falhou. Afinal, depois de pelo menos 30 a 40 minutos rodando de táxi, pelas ruas do bairro, dei com o nome de uma “pensão”, “hospedaria”, sei lá o quê. Já era fim de tarde. O frio era intenso. Paguei a corrida de táxi. E me vi, naquele instante, só. Eu e Deus a enfrentar o desconhecido da grande cidade. Entrei na modesta hospedaria, identificando-me à pessoa que me atendeu num simples balcão da sala de espera e pedi um quarto, que tive de dividir com um dois indivíduos, que ali já eram hóspedes.

Hoje, relembrando aqueles momentos por que passei, chegando sozinho em São Paulo, vindo de Alagoas, nos meus inexperientes 22 anos de idade, considero-me um “herói de batalhas quase vencidas”, porque, dali para diante, muita luta tinha ainda para enfrentar.


A primeira noite, na modesta pensão, ou hospedaria, dormi com a própria roupa com que viajei do Rio para São Paulo, confeccionada em casimira, que é um tecido leve de lã, azul-escuro, não me desfazendo nem do paletó, tipo jaquetão. A friagem era de doer na alma. O cobertor foi insuficiente para me aquecer. O pouco dinheiro, parte do adiantamento que o Banco, em Maceió, me fez, que eu trazia, acomodei-o no bolso interno do jaquetão, sem qualquer possibilidade de perdê-lo, nem ser roubado. No quarto, dormiam mais dois hóspedes, se não estou enganado. Na manhã seguinte, depois de um razoável café-da-manhã, tomado de uma disposição que Deus me deu, fui à luta em busca de um lugar melhor para me hospedar. Aí já era uma casa até vistosa, protegida por uma mureta na frente, onde um pequeno portão dava acesso a três lances de degraus que levavam à porta principal, ladeada por duas janelas grandes. A fachada era de um verde-claro ainda conservado, no estilo antigo-moderno, se assim pude considerar. E, melhor, localizada na Avenida Jabaquara, onde, um pouco adiante, não chegando a um quilômetro, estava a agência do Banco. Como a hospedagem anterior, não havia quartos individuais. Então, tive, como companheiro, um cidadão modesto, mas simpático, de pouca conversa. Do meu jeito. Não era nordestino, pelo seu jeito de falar. Como carregava no “r” (interiôrr...), julguei-o paranaense ou mesmo de qualquer cidade do interior de São Paulo. Não me lembro mais do seu nome. Às 5 da matina, já estava de pé. Era padeiro, como me disse. Saía, assim, àquela hora para o batente, não sei aonde. E eu, como a luz que acendia, despertava. E o que mais de incomodava não era tanto a luz que iluminava todo o quarto, mas o mau cheiro que exalava dos pés do companheiro, dono de um chulé de “matar gambá”, calçando os seus sapatos, se trocando, enfim, para ir embora. Ali, naquela hospedaria, felizmente, devo ter ficado por uma semana, no máximo.

Apresentei-me no dia 8 de julho de 1953, uma quarta-feira, à administração da agência do Banco do Brasil, que, àquela época, denominava-se Metropolitana Bosque da Saúde, em vista da sua aproximação ao bairro do mesmo nome. Na verdade, o prédio situava-se na Avenida Jabaquara. Não me lembro o número. E, entrosando-me, então, com alguns colegas, conhecedores do bairro, mudei-me para outro lugar, alojando-me mais próximo do Banco, passando a dividir um quarto com um companheiro de trabalho, num apartamento, de uma senhora viúva, que ficava no andar superior de um prédio comercial, que tínhamos acesso pelos poucos degraus de uma escada, de uma porta ao lado, para subir. Ali ficava também o “comércio” do Fuad, um tipo branquelo, muito simpático, descendente, o que me pareceu, de libanês ou turco. Era um pequeno armazém, uma espécie de casa de conveniência, onde se encontrava quase de tudo um pouco. Geralmente, nosso desjejum, meu e do colega, era feito ali, na bodega do Fuad. O almoço, com outros colegas, era na residência de uma família, nas imediações. Era uma comida caseira, mas muito bem preparada pela própria dona da casa.(Viaduto do Chá. Ano 50)

O Banco ainda adotava o velho estilo de administradores de agências, formado por um gerente e um contador que as figuras máximas que mandavam no “padaço”, quero dizer na agência. O gerente isolava-se em uma sala, fora do recinto da Contabilidade, onde trabalhava o funcionalismo, comandado pelo Contador. Um longo balcão, onde ficava um guichê de caixa, separava a clientela dos funcionários. Geralmente, era assim em todas as demais unidades, pelo Brasil afora, naquela época. Cabia ao Contador, entre outras tarefas que lhe competiam, receber os novos funcionários. Então, postei-me, como um recruta, em frente a um cidadão que tinha a cara mais de um boxeador, de um sargentão, de cara-amarrada, do que de um executivo, embora bem vestido, com camisa de mangas curtas, mostrando os braços musculosos e “enforcado” numa gravata, que era o sr. Paulo Bastos, entregando-lhe a minha carta de apresentação, recebida na agência do BB em Maceió. Dali para diante era só cumprir as determinações que me foram atribuídas, passando a respeitar, à risca, a “batuta” daquele “maestro,” que administrava com mão-de-ferro. Qualquer deslize, por mais simples que fosse praticado, não só por mim, mas por qualquer outro funcionário, mesmo superior ao cargo que eu exercia de servidor de Portaria, era advertido pelo sr. Paulo Bastos. O Gerente, sr. Orlando Baldi, mais parecendo o “proprietário” do Banco, pela imponência de sua maneira de ser, envergando, costumeiramente, seus trajes elegantes (calça, paletó, camisa e gravata), fechava-se na sua sala, bem decorada, por sinal, só se importando com a “fina” clientela, de empresários e comerciantes da região, que o procuravam para transações bancárias. Os demais afazeres, ou deveres, ficavam a cargo do Contador. A agência mais parecia um internato de meninos disciplinados, pois para isso tinha um disciplinador - sr. Paulo Bastos, do que mesmo com uma casa de negócios bancários. O rigor era tanto, até para os 15 minutos que tínhamos para o lanche, que antes fazíamos no bar do Mariano, um português, ou descendente, ao lado do prédio, onde desfrutávamos daqueles momentos de liberdade para trocarmos as nossas idéias, fomos proibidos. Mariano, então, trazia os nossos pedidos, entrando na agência com um enorme tabuleiro repleto de copos com café com leite e sanduiches de pão com queijo, ou misto com queijo e presunto, que conduzia até a Portaria, onde, cada um pegava o seu pedido, encaminhando-se, como criancinhas de jardins-de-infância, às suas mesas de trabalho. Tivemos que acatar, como uns cordeirinhos, as determinações ditatoriais do Contador. E o lanche passou a ser feito, por cada um de nós, em nossas mesas de trabalho. O pessoal de Portaria, em que eu me incluía, se isolava, para o lanche, numa sala, nos fundos do prédio, que abrigava os serviços concernentes. Era um verdadeiro regime de quartel, onde os sargentões trazem os recrutas no cabresto. E ninguém se manifestava. O medo e a covardia reinavam entre todos nós. Ninguém tinha a ousadia de se manifestar, por escrito, à Direção Geral do Banco, no Rio de Janeiro, sobre aquele “totalitarismo” reinante na Agência.

Um certo dia, fui designado pelo Contador – sr. Paulo Bastos, para levar qualquer coisa, não me recordo o quê, à Agencia Central, no centro da cidade. Aproveitei o ensejo e dei umas voltas rápidas no centro comercial, vendo algumas lojas, à procura de uma roupa (calça e camisa) para mim. Não levei mais do que uma hora nessa busca. Não me recordo se a minha ida e volta foi feita de táxi. Acho que foi mesmo num dos bondes que trafegavam naquela linha do Jabaquara às imediações da Praça da Sé. Por sinal, esse tipo de transporte era perfeito em São Paulo. Chegado de volta à agência fui logo solicitado a comparecer à mesa do sr. Paulo Bastos, que me interrogou qual tinha sido a razão da minha demora de retornar. Sem outra alternativa, inventei que havia me confundido com certas ruas da cidade, ficando meio perdido lá no centro, pelo que me aconselhou, com a sua peculiar maneira de sargentão, a fazer reconhecimentos noturnos do centro de São Paulo. Era uma dureza trabalhar ali. O ambiente mais parecia um quartel, com as disciplinas impostas pelos dois administradores, do que mesmo uma agência bancária.
Av. São João (anos 50)

O gerente, como citei atrás, fechado no seu gabinete, parecido até um rei, deixava os seus “súditos” (nós, funcionários) por conta do seu imediato, que dispunha de ‘carta branca’ para resolver todos assuntos relacionados com a Contadoria, incluindo-se, claro, o funcionalismo da agência. Certo dia, no entanto, logo que chegou para o expediente interno, das 8 às 10 horas, o sr. Orlando Baldi não foi direto para a sua sala, dirigiu-se à sala da Portaria chamando o servente Tanil, que era uma figura, alegre, brincalhão como ele só. Seu primeiro nome era Elias. A “missão” do Tanil para o gerente era limpar a sola de um dos seus sapatos, grudada de excremento de cachorro, em que pisou logo que desceu do seu carro em frente à agência. O “lorde”, que não era inglês, mas um paulista ou paulistano muito prepotente, não podia, ele mesmo fazer aquele “serviço”. Era humilhante, sem dúvida, para a sua posição de “mandatário” daquele território do Banco do Brasil. Tanil, como servente, cabia-lhe aquela missão. Mas, o espirituoso e bem humorado funcionário não deixou por menos. E, como vingança, na hora de levar a bandeja com o cafezinho para o “chefão”, com agilidade, deu um bote com a mão numa mosca que circulava no recinto da Portaria, esmagando o inseto junto com o açúcar já na xícara, fazendo uma mistura em que adicionou o café quente. Retirou com uma colherzinha a sujeira da superfície do líquido e, imediatamente, foi servir o habitual cafezinho ao Gerente, que bebericou aos pouquinhos o “moscafé” do Tanil, vingado, assim, da humilhação por que passou limpando a bosta de cachorro grudada num dos sapatos do sr. Orlando Baldi, que a tudo assistia, em pé, com a perna cruzada, virada para os olhos de Tanil, agachado, com um pequeno instrumento na mão, fazendo o “trabalho”.

Aquele servente era quem “desopilava os nossos fígados”, saturados do ambiente de serviço constrangedor a que nos submetiam aqueles administradores, com as suas tiradas engraçadas. Lembro-me de uma ocasião em que ele chegou no nosso recinto da Portaria, depois da limpeza dos dois W.Cs., que serviam à agência. Ainda com os apetrechos (vassoura, balde, panos-de-chão etc) nas duas mãos, com aquela sua maneira hilariante de se expressar, contou que estava com o braço direito por demais cansado de tanta força que fez para empurrar sanitário abaixo, com o cabo da vassoura, um volumoso excremento, que tinha certeza, era “fruto” do “sêo” Aristides, pois tinha sido ele o último funcionário a utilizar o sanitário. “Sêo” Aristides, escriturário, era um tipo de estatura mediana, meio entroncado, quase sem pescoço, moreno. Assim, pelo biotipo do funcionário, conforme se expressou Tanil, aquele “tijolo” só podia ter saído do Aristides. Essa e outras daquele servente alegravam os nossos rápidos instantes de contato, suavizavam o ambiente pesado que reinava naquela dependência do Banco.

Tive bom relacionamento, não só com os colegas do quadro de Portaria, a que eu pertencia, bem como com os escriturários, o pessoal da Contabilidade. Consideravam-me, talvez, por reconhecimento, modéstia à parte, ao meu nível cultural. Eu tinha deixado Alagoas sem ter tido êxito no vestibular de medicina na Universidade Federal de Pernambuco. Sabiam que eu tinha instrução ginasial e colegial. Talvez até mesmo o sr. Baldi tenha reconhecido a minha instrução escolar, colocando-me como recepcionista na ante-sala do seu gabinete. Ali eu ficava lhe anunciando esse ou aquele cliente que chegasse para tratar de assuntos concernentes aos interesses do Banco. Ali, na minha mesa, como os demais funcionários, atendendo a “ordem-de-serviço” do Sr. Contador, eu fazia o meu lanche, que, geralmente, era um copo de café com leite e um sanduiche de queijo com presunto ou mortadela. Uma tarde daquelas deixou-me num sufoco que nunca havia experimentado. O gerente atendia a um cliente no seu gabinete, quando, por uma distração, bati com a mão esquerda no meu copo de café, derramando todo o líquido tanto na mesa como pelo carpete verde que forrava o chão do ambiente da minha sala. O pavor que me tomou de ser flagrado pelo gerente naquela situação, fez com que eu limpasse a sujeira, como por milagre, por menos de cinco minutos. Corri até a sala da Portaria, trazendo um pano de chão bem molhado, que me salvou de uma repreensão, possivelmente, temia eu, face ao rigor que reinava naquela agência.


Em São Paulo permaneci por quase um ano. Ainda assisti às festividades do IV Centenário da fundação da cidade (25 de janeiro de 1554). Em 1954, vi de perto o orgulho dos paulistanos, e com muita razão, pelas homenagens transcorridas com festejos cívicos e populares, desde as primeiras horas da manhã. O dia todo foi de festa. E eu ali, nordestino, como tantos outros, aqueles que chegaram lá bem antes de mim, que contribuíram para a grandeza da cidade, os apelidados “paraíbas” e “baianos”, de pouca instrução escolar até, mas corajosos, que em muito trabalharam, pesado, é bom frisar, para a construção dos alicerces que levantaram esse monumento que hoje é São Paulo, que, de fato, muito deve também aos valorosos nordestinos. a gostar da cidade, mesmo sofrendo com a friagem úmida do seu inverno, que parecia doer até nos ossos da gente. E à noite então, na hora de dormir...!? Pelo amor de Deus! A propósito, fui aconselhado, não sei se por algum colega, a forrar de jornal o colchão da minha cama, deixando por cima o lençol que a cobria. Dava algum resultado mesmo. Não entendi a “química” daquele procedimento. A composição do papel-jornal deve ter algo diferente dos papéis comuns, os que servem para empacotamento de mercadorias. A razão é tanta que, quando compramos nos mercados frutos ainda verdes, somos aconselhados a embrulhá-los em jornais, adiantando, assim, o seu amadurecimento. Aquele conselho que recebi, muito me ajudou a enfrentar as noites “geladas” da Paulicéia, quando, algumas vezes acompanhadas daquela garoa, lembrando até, como diziam, o “fog” que acontece em Londres. Gostava de fazer lanches, ou comer pedaços de pizzas, nos domingos, nas agradáveis e freqüentadas lanchonetes da Avenida São João ou da Ipiranga, onde também se concentravam os bons, bons mesmo, cinemas. A famosa, hoje, Avenida Paulista ainda não tinha nascido. Segundo dados históricos, ela foi inaugurada, com o nome de Avenida das Acácias, em 8 de dezembro de 1981, passando logo depois a chamar-se Avenida Paulista em homenagem ao seu povo. São Paulo ainda não era essa “selva de pedra”, esse mundo de concreto-armado” de hoje. A gente contava nos dedos os edifícios mais altos, construídos na zona central da cidade, destacando-se o prédio do Banespa, da Agência Centro do Banco do Brasil. O primeiro arranha-céu – o Edifício Martinelli, que recebeu o nome do seu construtor, Giusuppe Martinelli, foi iniciado em 1924 e inaugurado em 1929, sendo o primeiro arranha-céu do Brasil e da América Latina, segundo dados históricos.

Os shoppings não existiam ainda, nem metrô, que só em 1969 foi criada uma Companhia para construir aquele meio de transporte para São Paulo. Os bondes, de primeiríssima qualidade, atendiam muito bem o serviço urbano. O cruzamento da São João com a Ipiranga era, naquela época, o “point” da vida noturna da cidade, onde se misturavam também, discretamente, pederastas e prostitutas em busca de aventuras em troca de dinheiro, claro. Não havia motéis ainda. Os encontros íntimos se faziam nos sobrados de ruas adjacentes. Na Avenida Rio Branco, já pelas 21 horas, havia o “trottoir” de mundanas para o comércio do sexo. Alguns “dancings”, naquelas redondezas, abriam suas portas para maiores de 18 anos. Pagava-se para dançar. E ficava por conta da dançarina, que conduzia um pequeno alicate furador, o valor a pagar na saída. Cada picotada no cartão valia um tanto (?). A cidade já contava com uma razoável vida cultural, sendo o imponente Teatro Municipal o foco das apresentações de peças teatrais e concertos de orquestras filarmônicas. Os artistas populares já se destacavam, entre eles, Adoniram Barbosa com a sua “Saudosa Maloca”, Trem das Onze” e outras músicas que muito bem caíram no gosto do povo. O conjunto vocal “Demônios da Garoa” fazia também muito sucesso na popularidade da vida paulistana. Isaurinha Garcia e Hebe Camargo eram destaques entre outras cantoras que se apresntavam em auditórios das Rádios, que transmitiam seus programas, que ainda não eram em FM (frequência modulada), não só para a Capital como para todo território nacional.

A Praça da Sé e a Praça da República, como o Viaduto do Chá, o Viaduto Santa Efigênia, o Largo do Arouche e Largo de São Bento, durante o dia, fervilhavam de gente se cruzando em sentidos contrários, por sinal, bem vestida; muitos engravatados até, que deviam trabalhar, por certo, em escritórios, repartições municipais e bancos, Outra coisa que registro aqui, é que a violência nem sonhava ainda nascer nas ruas e bairros de São Paulo. A vida transcorria em perfeita paz. Longe estavam esses dias nebulosos, tristes da atual “Cracolândia” e dos donos de pontos de drogas, que hoje proliferam, não só na periferia, mas em determinados lugares do centro da cidade. Não se via miseráveis arranchados embaixo de viadutos, como hoje, com toda a opulência dos dias atuais de São Paulo. O número de veículos transitando era bem menor, não deixando margem para o que acontece atualmente, com quilômetros de engarrafamentos, como acontece agora, todo dia, nas Marginais Tietê e Pinheiros, e nos finais-de-semana e feriados, quando os paulistanos deixam a cidade em busca do litoral. É o resultado do progresso com as suas inevitáveis consequências.

Não me recordo, na minha despedida, transferido que fui, por permuta, para o Rio, se me despedi dos “chefões” da Agência Metropolitana Bosque da Saúde, apertando as mãos “de ferro” daqueles senhores. Vi tanta injustiça cometida por eles, administradores, com o pacato funcionalismo, tanto da Contabilidade como da Portaria, que nem fui dizer “até logo” àqueles “ditadores”. Se me despedi, foi com um curto “adeus”. E bem melhor teria sido um “até nunca mais”. Despedi-me, que me lembro, do Sr. Nelson Gaia Penteado, um paulista, educado, que era Chefe do Cadastro, que também não “engolia” aquela disciplina imposta na Agência, bem como do Hélio, Euclides, Serrano, Carioca, Gaúcho, Bolinha, Zequinha, Marcelo e Nélio. Aliás, com esse último que enumerei, aconteceu um fato até hilariante. Ele não perdia qualquer oportunidade para trocar algumas palavras com esse ou aquele colega. Um dia, ele, que devia ter ido ao WC. E, na volta, parou na mesa de outro colega para um ligeiro papinho, que não foi muito adiante porque o Contador, de que nada escapava de sua vigilância, levantou-se da sua poltrona e foi direto ao Nélio perguntar o quê ele fazia ali. Nélio, com certo deboche, respondeu de pronto que estava “botando a conversa em dia”. Não sei qual foi a reação do sr. Bastos. Marcelo, entre os colegas acima, pernambucano, chegado à Agência, vindo do Recife, depois de mim, não agüentou o clima frio de São Paulo e, muito especialmente, o regime adotado pelos administradores do Banco. Não sei como conseguiu voltar tão logo para o Recife, porque não chegou a completar um ano trabalhando ali. Foi embora primeiro do que eu. Uns eram apelidados, como escrevi acima. Tudo fazia parte da boa camaradagem que reinava entre os colegas. Aquela dependência do Banco, tempos depois, passou a chamar-se Metropolitana Jabaquara. Elias Tanil, aquele que esmagou uma mosca no café do Gerente, foi o único que esteve comigo na Rodoviária até a partida do meu ônibus para o Rio, às 23 horas. Tempos depois, ainda voltei a São Paulo, acho que em 1957 ou 1958, para prestar concurso interno para a carreira de Contabilidade. E 1959, casado, ali passei cinco dias em “lua-de-mel”. Pisei, outra vez, a terra daquela grande cidade; hoje, a maior da América Latina e a 4ª maior aglomeração urbana do planeta, tendo mais de 11 milhões de habitantes, fundada pelos jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta em 25 Janeiro de 1554. Quero acrescentar, por fim, que São Paulo é também um orgulho para nós, embora não sejamos paulistanos, mas somos brasileiros, iguais a eles, irmanados, pois, no mesmo espírito de brasilidade.

Estava eu (transferido), então, para a Cidade Maravilhosa, para aquele Rio de Janeiro, admirado não só pelo seu povo, pelos cariocas, mas pelos brasileiros de todos os recantos do Brasil. Era ainda o Distrito Federal, onde a Presidência da República, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados ditavam as normas da política nacional. “Foi capital do Brasil Colônia a partir de 1763, capital do Império Português na época das invasões de Napoleão, capital do Império do Brasil, e capital da República até a inauguração de Brasília, na década de 1960. É também conhecida por Cidade Maravilhosa, e aquele que nela nasce é chamado de carioca.”

No Rio, vivi o 2º Capítulo da minha vida até o ano 1962. No período ali vivido, ainda existia o Palácio Monroe, que se vê na foto (prédio menor), criminosamente demolido em 1976, por determinação do general-presidente Ernesto Geisel, com o total apoio de Roberto Marinho e do arquiteto Lúcio Costa. O Globo, nos editoriais do seu presidente, Roberto Marinho, alegava que o prédio atrapalhava o trânsito na Av. Rio Branco. E, por sua vez, Lúcio Costa justificava dizendo que o Monroe iria causar problemas na construção do metrô do Rio, como se os trens fossem trafegar na superfície. Pode? “Geisel nutria um ferrenho horror pelo filho do Coronel Arquiteto Francisco Marcelino de Souza Aguiar, projetista do Palácio Monroe. A raiva que Geisel sentia dele foi originada quando o filho de Souza Aguiar foi promovido no Exercito em detrimento de Geisel.” Ali, ele despejou a sua baba peçonhenta, por vingança, destruindo um monumento que integrava uma parte preciosa da História do Brasil. No Moroe, até então, era onde funcionava o Senado Federal. Contudo, o Rio continuou lindo, sendo, no meu modesto parecer, a cidade mais bonita do Mundo, emoldurada pelas suas montanhas do Pão-de-Açúcar, Corcovado, Pedra da Gávea, Tijuca, Pavãozinho, Rocinha e outras. No meu tempo, a Barra da Tijuca ainda era um sonho dos administradores, isso pelos idos dos anos 50. Para quem não sabe, “O nome – Monroe (dado ao prédio do Senado) foi uma homenagem ao Presidente americano James Monroe, por sugestão do Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores. Monroe foi o criador do Pan-Americanismo e, naquele local, realizou-se a "Terceira Conferência Pan-Americana".

Quando desci do ônibus, vindo de São Paulo, na Rodoviária, que ainda era a antiga, nas imediações da Praça Mauá, ninguém também me aguardava. E lá fui eu outra vez bater à porta do meu irmão, que estava ciente da minha chegada ao Rio naquela manhã de domingo de céu nublado, muito fria, que não esqueço. Mas, que não se dignou ir me receber no Terminal Rodoviário.

Apresentei-me, para reassumir, ainda como funcionário de Portaria, poucos dias depois, na Agência Central, à Rua 1º de Março, 66, onde, hoje, é o Centro Cultural do Banco do Brasil. Além dessa atividade, ali se encontram históricos da vida da instituição, à qual tenho muito orgulho de ter pertencido. E continuo a pertencer, embora aposentado, desde 1984. Ali, encontrei bom ambiente de trabalho.

Ao Banco, posso dizer, com orgulho, que me dediquei de corpo e alma, deixando de lado até o interesse de partir para outra profissão, prestando um vestibular qualquer, para qualquer outra carreira. Faltou-me estímulo. Não sei nem dizer por quê. O que estava me interessando, naquela altura da minha vida, era entrar para o quadro de Contabilidade, ser escriturário de carreira. Era o meu objetivo. E isso só veio acontecer em 1958, quando, só na cidade de São Paulo, o Banco fez um concurso (interno) para resolver a situação de muitos funcionários de Portaria, desejosos de mudarem de situação funcional. Conquistei, afinal, aquela minha pretensão.

Já no Rio, em agosto de 1954, o Brasil foi surpreendido com o suicídio de Getúlio Vargas. À frente do Palácio do Catete grande multidão compareceu, formando fila quilométrica para se despedir do líder populista, que disse: Só morto sairei do Catete. E realmente saiu.

Eu mesmo entrei na fila, só por curiosidade, pois, naqueles dias da minha vida, ainda não me despertava qualquer paixão por ideais políticos. Embora acompanhasse a campanha ferrenha do jornalista Carlos Lacerda, udenista (UDN), partido do Brigadeiro Eduardo Gomes, contra Getúlio Vargas, que estava envolvido num “mar de lama” nos porões do Palácio do Catete, como dizia o jornalista no seu combativo jornal Tribuna da Imprensa.

O Rio era ainda de muita paz, sem essa violência de agora. Os traficantes não eram os “donos” dos Morros, que eram habitados por gente simples, trabalhadora. Eu mesmo, nas minhas noites em Copacabana, quando os lotações (mini-ônibus) escasseavam em circulação depois da meia-noite, muitas vezes, pela a Av. Siqueira Campos, caminhava sozinho, entrando no Túnel Velho para sair em Botafogo, onde morava. E o Rio continua ainda mais lindo, mesmo com a insegurança por que, atualmente, o alegre e hospitaleiro povo carioca está vivendo.

O meu primeiro desempenho, como escriturário “Inicial”, foi numa agência do Banco na zona portuária, perto da Praça Mauá, na Rua do Livramento, no bairro da Gamboa. Pouco tempo por ali fiquei, transferido que fui para um departamento da Direção Geral, no Edifício Itaboraí, na Av. Getúlio Vargas, perto da Igreja da Candelária.

O bonde, que era o meu meio de transporte, como de 80% da população carioca, partindo da Zona Sul, dos bairros de Copacabana, Leblon, Ipanema, Botafogo e Laranjeiras, chegando até ao Largo da Carioca, no Terminal Tabuleiro da Baiana. Outros bondes também serviam a bairros da Zona Norte, como Tijuca, Meyer, Engenho de Dentro, Cascadura, Penha, Bonsucesso e outros. Havia os chamados “lotações”, com assentos limitados, não se viajando em pé, como nos ônibus que também circulavam para aqueles bairros e outros da Zona Norte, beneficiada também pelos trens da Central do Brasil. O metrô do Rio só começou a operar em março de 1979, na administração do governador Chagas Freitas.
(Bonde do Rio)

Os bondes saíram de circulação, substituídos que foram pelo transporte moderno do metrô. Por lembrança, restou apenas o bondinho de Santa Teresa, que faz o trajeto por sobre os Arcos da Lapa. “A estação dos bondes funciona diariamente, das 7:00h às 21:30h e fica na rua Lélio Gama, sem número (ao lado do prédio da Petrobras). A linha é de 1896, mas o terminal é bem mais recente, pois foi reconstruído à medida que a cidade foi crescendo. Infelizmente o terminal é uma construção moderna horrorosa que nada tem a ver com o bonde. Contrastando com a estrutura reta do local, a área de manobra dos veículos lembra mais um jardim. É dali que se toma o bondinho, rumo a Santa Teresa.”

O transporte aéreo, no Brasil, era privilégio da classe mais alta daquela época. As companhias de aviação que se destacavam, Cruzeiro do Sul, Panair do Brasil, atendiam àquela classe “A”, que assim já podíamos chamar. Aos mais modestos, em que me incluía, os vôos eram oferecidos pela Aerovias Brasil e Lloyd Aéreo. Lembro-me que, numa das minhas viagens a Alagoas, de férias, numa das aeronaves da “Aerovias”, deixando o Aeroporto Santos Dumont às 5h da manhã, a aterrissagem aconteceu às 5h da tarde no Aeroporto de Maceió. O trajeto do vôo tinha descida obrigatória em Vitória, Ilhéus, Itabuna, Jequié, Salvador, Aracaju e, finalmente, Maceió. Foi uma verdadeira maratona naquele sobe-e-desce. Pelo amor de Deus!...E foi a minha primeira viagem de avião, pois, quando deixei o Nordeste foi a bordo de um “ita”, como disse no início.

A televisão dava os seus primeiros passos, naquela minha época no Rio, bem como em São Paulo. Teve início em setembro de 1950, trazida por Assis Chateaubriand, que fundou o primeiro canal na TV Tupi. O Rádio e o Teatro dominavam o mundo do entretenimento. Na Praça Tiradentes, o Teatro Recreio lotava, nas apresentações do produtor Walter Pinto, com as suas revistas, em que se destacavam famosas vedetes, como Rose Rondeli, Mara Rúbia, Nélia Paula, Virgínia Lane e outras. No teatro, Procópio Ferreira, Bibi Ferreira (filha de Procópio), Paulo Gracindo e outros faziam sucesso na vida cultural (teatro é cultura) da cidade. O cinema brasileiro, com as suas chanchadas, agradava meio mundo de espectadores com suas comédias, trazendo em cena as figuras de Oscarito, Grande Otelo, Zeloni. Atlântida Cinematográfica, que era a nossa produtora de filmes, tinha em seu elenco artistas, entre outros, como Renata Fronzi, Anselmo Duarte, Catalano, José Lewgoy, Fada Santoro e Renato Restier. As salas de cinema, que eram boas salas, por sinal, instalavam-se em prédios no Centro do Rio e em alguns bairros. Na Cinelândia se não me engano, havia seis ou mais salas, denominando-se, por isso – Cinelândia.

Muito aprendi no Rio de Janeiro, na “escola” da vida. Nos meus 24 anos de idade, enfrentando certos obstáculos que se me depararam, vivendo praticamente só na cidade grande, sem aquela vivência natural dos cariocas. Tomando, dia a dia, lições, adquirindo experiências, que, quando não temos alguém de lado para nos ajudar, facilmente absorvemos. Vivi quase “distante” do irmão que ali já vivia, introduzido no Banco que fui por ele, usando o prestígio de alguém, de algum colega seu da Direção Geral. Fiz as minhas amizades nos círculos de conhecimento que tive, tanto no trabalho como fora do Banco. Morei em “repúblicas” com dois ou três daqueles conhecidos. E levava a vida “na valsa”, sem preocupação financeira, porque o Banco, com o meu trabalho, garantia a minha sobrevivência. Na minha conta bancária, religiosamente, todo fim de mês, os meus vencimentos eram creditados. Aprendi, também, a controlar os meus gastos pessoais. Nunca ultrapassava o meu limite, nem mesmo aproveitando as noites das sextas-feiras e sábados da vida alegre do Rio, principalmente de Copacabana, o bairro mais badalado, desde aquele tempo.

E eu já vivendo no Rio, era ainda um ‘turista’. Aos poucos, fui descobrindo as maravilhas, as belezas da terra carioca. Até mesmo, por incrível que pareça, o baixo meretrício. “Na Lapa, na rua Conde Lage e adjacências, localizavam-se os bordéis elegantes da cidade - os prostíbulos ordinários ficavam na "Zona do Mangue", próximo da Praça 11, onde surgiu o samba. ("Zona" passou a significar local de prostituição. Quando se queria dizer que uma mulher se prostituíra dizia-se que ela "caiu na zona" ou era "uma mulher da zona." Só não recebi a faixa de cidadão-honorário, porque era “um-joão-ninguém”, perdido na multidão, mas, eu amava, como ainda amo, a terra carioca. Entre outras maravilhas do Rio, para mim, foi que ali casei e nasceram ali, em Botafogo, as minhas duas filhas Márcia (em 1959) e Kátia (em 1961). Tenho orgulho disso.

Vê-se, acima, pequena mostra de uma das ruas da Zona do Mangue, em início de noite, com ainda reduzido número de “profissionais” do sexo, e de visitantes. A AIDS não era ainda o ‘bicho-papão’ na década de 50, época em que vivi no Rio. Conforme registros, o primeiro caso aconteceu, no Brasil, em 1982. Mas, outras infecções eram passíveis de contágio, como a sífilis e outras doenças venéreas. A prevenção, para quem se cuidava, era, como é até hoje, a ‘camisinha’. O “negócio” de meninas-de-programas, e, agora, também garotos-de-programa, ainda não estava “oficializado”, com agentes, estabelecidos, com telefones etc, para esse comércio da prostituição. Os anúncios, em alguns jornais, oferecendo mulheres para sexo, começaram a aparecer depois que as chamadas casas de tolerância entraram em decadência, com as desapropriações de sobrados antigos, onde, geralmente, funcionavam os prostíbulos, dando lugar a prédios modernos.

O Carnaval do Rio, naquela década, não tinha ainda esse deslumbramento de hoje, exibido na Marquês de Sapucaí. Era modesto. Posso dizer, porque presenciei alguns desfiles. As Escolas, sem grandes ornamentações, davam início aos desfiles na Av. Getúlio Vargas, na antiga Praça 11, entrando na Av. Rio Branco, findando, em apoteoses, na Cinelândia. Não me recordo se havia arquibancadas, cobrando-se ingresso para assistir aos desfiles do reinado de Momo. Nos blocos de rua o povo brincava de verdade, como se vê, abaixo, e não se limitava, como hoje, a ver o exagero das Escolas, com milhares de figurantes, inclusive com mulheres quase nuas, insinuantes, dentro de uma ‘arena’, que é o Sambódromo. E nas arquibancadas, aprisionada, a massa popular, em histeria, requebra e se agita, sem nenhum direito de participar da festa, que, de fato e de direito, é uma festa do povo. Industrializaram o Carnaval, que a poucos pertence.

E, falando em blocos de rua, não se pode deixar de lembrar o mais famoso bloco de rua – Cordão da Bola Preta - que dava o início aos dias de Carnaval do Rio.

Quem não chora, não mama / Segura meu bem, a chupeta
Lugar quente é na cama / Ou então, no Bola Preta.
Vem pro Bola, meu bem / Com alegria infernal
Todos são de coração / Todos são de coração
Foliões do Carnaval / Sensacional!"
      (Nelson Barbosa / Vicente Paiva - 1962)

“Enquanto os versos famosos do hino do Cordão da Bola Preta não forem entoados, no centro do Rio de Janeiro, ao meio-dia do Sábado Gordo, precedidos das tradicionais clarinadas, o carnaval carioca não estará oficialmente aberto. O que acaba sendo mais uma ironia da mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, famosa por seu bom humor.” (De registros).

Hoje, o Carnaval virou uma indústria auferível, movimentando fábulas, em dinheiro, que não sei de onde vem, nem para onde vai. É um mistério, eu acho. O Sambódromo, outra grande obra de Oscar Niemeyer, é a fonte de dinheiro nos dias dos desfiles. E essa arrecadação será contabilizada pela Prefeitura do Rio, ou pelos presidentes das Escolas? Haverá distribuição de lucros? Algum resultado positivo, monetário, deve haver. E o “leão” da Fazenda? As Escolas, como as Igrejas, serão desobrigadas de Imposto de Renda? Como não sou economista, como muitos iguais a mim, alguém poderia nos esclarecer isso? Deixo no ar a questão...

E o Rio continua lindo com Carnaval ou sem Carnaval, embora na luta cotidiana contra a violência, contra os traficantes, que instalaram um poder paralelo em determinadas Favelas, com armamentos, muitos, superiores aos utilizados pela Polícia. Com os últimos acontecimentos de incêndios de veículos em variados setores da cidade do Rio de Janeiro, comandados pelos chefes do tráfico de drogas, desafiando o Poder Público, o Governo do Estado, com o apoio total do Governo Federal, enfrentou o desafio dos bandidos, e foi à luta. Policiais militares e civis, com a cobertura das Forças Armadas, entraram no Complexo do Alemão, que era uma espécie de quartel-general, desalojando a bandidagem, e, ao que, tudo parece, trazendo paz à gente simples e ordeira que ali habita. E Copa de 2014 está aí. A segurança é um item primordial na agenda dos responsáveis pelo evento, que trará ao Brasil e, principalmente, ao Rio, multidões de estrangeiros, aficionadas pelo futebol. A repercussão, pelos jornais de todo o mundo, dessa guerra entre o Estado Brasileiro e os marginais do tráfego de entorpecentes, poderá enfraquecer o entusiasmo dos estrangeiros pela Copa no Brasil, desconfiados com a insegurança por que experimentariam em solo brasileiro. São três anos ainda até lá. É tempo suficiente para que o governador Sérgio Cabral garanta a realização das competições no Rio, dando certeza, garantindo aos cidadãos que a Paz reinará em todos os quadrantes da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tudo fazendo crer que já teve início agora,
sem mais cenas como esta, quando da invasão do Complexo do Alemão, em 28.11.2010, fotografadas por repórteres, inclusive, estrangeiros, levando ao Mundo o retrato do poderio do narcotráfico, que trouxe às ruas soldados e carros blindados do Exército Brasileiro. Arrancar pela raiz esse ‘cancro’ dos entorpecentes, da cocaína, principalmente, com os quilômetros de fronteira, que tem o Brasil com nove países, propiciando, ainda, o contrabando de armas poderosas e munições para reforçar o poder paralelo dos narcotraficantes, é uma tarefa difícil, mesmo com determinadas providências a cargo das Forças Armadas. Com essa nossa fronteira, o Brasil também tem sido um caminho fácil, um corredor aberto para a exportação da cocaína da Colômbia ou da Bolívia, camuflada de variadas maneiras, através de portadores “laranjas”, ou não, para aeroportos da Europa. E a verdade é que a “droga” já se difundiu também pelo mundo inteiro.

UM PRESENTE DE GREGO – Assim posso chamar. Em 1961, eu trabalhava no Departamento do Funcionalismo (FUNCI), que ficava no 6º andar (era o último) da Agência Central do Banco, na Rua 1º de Março (Nº 66). Já como funcionário da Contabilidade, aprovado em concurso interno. Era encarregado da movimentação dos funcionários de Portaria (contínuos e serventes). Um dia, procurou-me um funcionário (servente) de uma agência de São Paulo (Capital). Ele estava às vésperas de sua aposentadoria. E, assim, desejava ser transferido do quadro de “servente” para “contínuo”. Melhoraria, um pouco, a sua remuneração. Levei o caso ao meu Chefe (Dídimo Peixoto de Vasconcelos), que autorizou a reivindicação do solicitante, que era, por sinal, um senhor modesto e educado, aparentando uns 50 anos de idade. Dias depois, recebi um telefonema de São Paulo. Estranhei. Do outro lado da linha escutei a voz do “novo” contínuo, que me presenteava com um belo exemplar de cachorro, da raça bassê, que devia ser o animal de estimação da família. A “encomenda” foi despachada, de trem, de São Paulo. E que tive de ir receber na Central do Brasil. O pequeno animal me fez uma “festa” danada. Parecia que já me conhecia. Lamentavelmente, tive que me desfazer do “linguiça”. Eu morava, naquela ocasião, num apartamento de quarto-e-sala. A minha filha (Márcia), com três anos, apavorou-se com o animal correndo e pulando dentro de casa. E o “presente de grego” fui obrigado a passar para frente, cedendo a doação a uma vizinha do andar superior, que o aceitou com muito carinho.
(Rua do Ouvidor em 1957)

Na década de 60, a mulher brasileira começava a adotar a vestimenta que era exclusividade do homem – a calça comprida. Antes, cumpria o que apregoavam as religiões: “A mulher não usará roupa de homem, nem o homem veste peculiar à mulher; porque qualquer que faz tais coisas é abominável ao Senhor, teu Deus.” As rodadas saias-compridas, aos poucos, foram substituídas pelas, agora, estilizadas calças jeans, já aceitas até nos locais de trabalho de funcionárias públicas, comerciárias, bancárias etc. Nas praias, os maiôs das banhistas, em Copacabana, Ipanema e Leblon, eram discretos. Os tipos biquínis, “fio-dental” e “asa-delta” entraram para valer na vida das cariocas nos anos 80. Nos anos 70, as frequentadoras das areias de Copacabana já mostravam seus corpos com maiô duas-peças.
Largo da Carioca – década de 50)

Naquela época (década de 50), no Banco, tínhamos dois clubes recreativos, a AABB e o Satélite, este freqüentado pelo pessoal de Portaria. Havia, a meu ver, uma certa discriminação, separando, assim, as duas classes: escriturários e contínuos. Anos depois, aquele sentimento preconceituoso foi desaparecendo. E alguma determinação, não sei se partida da Presidência do Banco, acabou com o “orgulho” dos associados, os escriturários da Contabilidade. Hoje em dia, o Clube é um só, acolhendo, para todas as suas atividades, todos os funcionários, sem distinção. Naqueles dias, já bem distantes, mesmo como contínuo, por convite ou amizade, frequentava os bailes da AABB, que ficava na Tijuca. No Carnaval de 1958, conheci Ezetilde. E, em 10.01.1959, casamos. Foi um solenidade modesta, na residência de um primo de Ezetilde (Aníbal), no Estácio, ministrada por um pastor presbiteriano.

(10-01-1959)

Tivemos um modesto começo de vida, morando num apartamento de quarto-e-sala. A vida a dois, mesmo não sendo um mar-de-rosas, tivemos os nossos bons momentos de felicidades. Houve, como ainda há, “as pedras” no nosso caminho, os altos e baixos que acontecem até às “melhores famílias”. E, aos trancos e barrancos, “entre tapas e beijos”, como fala uma certa música popular, vamos levando o “barco”, evitando naufragar no revolto “oceano“ da vida, que já nos trouxe até hoje a esse “porto” de 2012.

RECORDANDO. No intervalo de namoro, de 58 a 59, aprovei-me, em concurso interno do Banco, galgando, então, a carreira de Contabilidade, não pertencendo mais, assim, ao Quadro de Portaria do Banco, em que até, então, fazia parte do contingente dos funcionários chamados “contínuos”. Havia também, daquele Quadro, os “serventes”, encarregados dos serviços de limpezas. Foi quando voltei a São Paulo, pela segunda vez, juntamente com outro colega que experimentava a mesma situação que eu, pois, de “contínuos” queríamos passar para “escriturários”. Fomos e vencemos. Dali para diante, não tive mais contato com aquele colega, que, como seu desejo, aprovado que fosse, queria voltar para sua terra-natal, Corumbá ou Cuiabá (MT). Como Escriturário-Inicial, fui designado para trabalhar na agência da Gamboa, que ficava perto do Cais do Porto. Se não me engano, era a Metropolitana Livramento. Passei pouco tempo ali. Logo, fui transferido para a Direção Geral, para o Departamento do Patrimônio Imobiliário (DEPIM). Com a mudança da chefia daquele setor, dispensado do Gabinete, como outros colegas, apresentei-me no Departamento do Funcionalismo (FUNCI), para ser lotado em qualquer outro local. Felizmente, não sei por quê, fiquei ali mesmo no FUNCI.

TRANSFERÊNCIA PARA BRASÍLIA – Este, posso dizer, foi o terceiro capítulo da minha trajetória, depois que “peguei um “ita” no Nor...deste” e fui para o Sul (São Paulo e Rio de Janeiro). Juscelino Kubitschek, mais do que Pedro Álvares Cabral, tinha descoberto o Brasil, construindo a nova Capital do Brasil – Brasília. A euforia explodia de norte a sul. O Planalto Central era a Meca brasileira. Todos, ou quase todos, olhavam só naquela direção. As oportunidades eram alvissareiras até para colegas que desejassem para lá se transferir. O Banco oferecia vantagens financeiras, entre outras, como, tão logo, residir em imóveis construídos para os seus funcionários. De início, não tive qualquer entusiasmo de sair do Rio, a Cidade Maravilhosa, para me aventurar pelo “eldorado” brasileiro, “inventado” por JK no longínquo interior do Planalto Central. “...em 1955 foi delimitada uma área de 50 mil quilômetro quadrados – onde localiza-se o atual Distrito Federal. A construção da nova capital teve início em abril de 1956, no comando do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, com a criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (NOVACAP) e o projeto de lei 2.874, o governo lançou o edital do Concurso Público para a construção do Plano Piloto.”

"Deste Planalto Central, desta solidão em que breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com uma fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". Juscelino Kubistchek "

Em 1959, já casado, residindo num apartamento de quarto-e-sala, na Rua

Aristides Lobo, no Rio Comprido, vi que o nosso espaço estava reduzido, com as duas filhas, Márcia e Kátia, dormindo no mesmo (único) quarto. A nossa situação financeira apertou. Ezetilde não trabalhava. Pensamos em mudar de apartamento, que, com dois quartos atendia às nossas necessidades. Pesquisamos. Mas, as nossas possibilidades estavam bem aquém dos preços dos aluguéis de imóveis no mercado. Então, só vi uma saída, que era transferir-me para o novo Distrito Federal. Com informações de um colega, alagoano, por sinal, Wilmar Jatobá, que havia se transferido de Garanhuns (PE) para Brasília, não tinha outra saída senão conseguir, também, meu deslocamento para o DF de JK. Aí, como se diz, “o bicho pegou”. As transferências foram “trancadas”. Os pedidos, do Brasil inteiro, ultrapassaram a expectativa da Direção Geral do Banco. Já bastava o número de funcionários para ali deslocados. E agora? O quê fazer? Não pensei duas vezes e fui “chorar” a minha desilusão com o Chefe do Funci (Dídimo Peixoto de Vasconcelos), que, não sei como, confesso, convenceu alguém na Presidência, e a minha transferência foi autorizada. Isso aconteceu em 1962. Recebi do Banco ajuda de custo, incluindo até passagens de avião. E, só, parti para Brasília. A família seguiu depois, enquanto, em Brasília, eu aguardava as chaves do meu novo apartamento, no bloco ‘I”, da SQS 308. Nesse intervalo, como outros colegas, fiquei hospedado nos alojamentos que o Banco mantinha na SQS 303, onde, depois, nasceram ali outros blocos de apartamento. Hoje, desde 1999, vivo, melhor, vivemos nessa quadra. Não sei por quê, chamavam aquele alojamento de Lâminas. As refeições, muito boas, eram servidas num restaurante que ficava numa parte da Agência Central, em término de construção. Voei para o novo DF numa aeronave da desaparecida “Cruzeiro do Sul”, que atendia muito bem, nos seus vôos domésticos, com primoroso serviço de bordo, servido por comissárias bonitas, trajando, elegantemente, o uniforme da Companhia. A minha intenção, o meu pensamento era passar uma temporada, um ano ou dois, no máximo, tempo suficiente, acreditava, para fazer um “pé-de-meia”, uma boa economia, e voltar para o Rio, onde compraria um apartamento e lá me fixaria definitivamente. Gosto do litoral. Não sou pescador, mas admiro o mar. Como não somos donos de nosso destino, que a Deus pertence, o meu projeto para aquele “futuro” que almejava, foi de águas abaixo. O tempo foi passando e eu fui ficando, ficando, somando um ano atrás do outro.

(o meu primeiro carro, um “fusca” ano 1961, de segunda mão).

NA METROPOLITANA ASA SUL, assumi. Essa agência, por sorte, estava instalada na quadra 507, da Av. W-3. E o nosso apartamento ficava na SQS 308, de onde eu ia, a pé, para o trabalho. Ali, trabalhei até essa metropolitana ter o seu quadro de funcionários reduzido, transferidos alguns para a Agência Central, para onde eu fui também. Na Central, trabalhei por um bom período. Quando consegui uma “comissão”, depois de um longo período na “geladeira”, isto é, sem cargo comissionado, fui designado para chefiar subagências. Os colegas do “aquário” do Gerente – Nazareno Paranhos – eram beneficiados. Eu, como “peixe fora d´água”, penei um bocado na “vala comum”, como se dizia. Comissionado, então, “gerenciei” algumas daquelas extensões da Central, como no Tribunal de Contas da União, na Presidência da República, onde fiquei por dois períodos, no SNI (Serviço Nacional de Informações) e no DNER, onde me aposentei, em 09 de janeiro de 1984. Naquele período, o Banco negociou a venda dos apartamentos para nós, funcionários, ocupantes. Como proprietário, então, do imóvel, resolvi mudar de morada, trocando o apartamento por uma casa no Lago Sul, onde moramos até 1999. Dali, negociando a casa, na QI-9, viemos para o Plano Piloto, para a SQS 303. E aqui, no bloco ‘G’, abaixo, estamos há 12 anos. A próxima morada? Só Deus sabe...

E, de 1962 cheguei a 2011 vivendo em Brasília. Finquei, querendo ou não, as minhas raízes no Planalto Central. O início não foi fácil, com relação ao clima do Planalto, geralmente seco, devido à altitude de um pouco acima de mil metros. A vegetação, tipo cerrado, quase ou nenhuma umidade oferecia. O frio seco dos meses de agosto e setembro incomodava, em alguns, provocando tosse e até sangramento nasal, além de secar os lábios, que tínhamos de protegê-los com pomada de cacau. Recomendavam que, à noite, na hora de dormir, puséssemos, no quarto, vasilhames com água. Outro fator detestável era a poeira vermelha, natural do solo da região, talvez com elevado teor de ferro. Devido ao solo trabalhado pelas construções que se sucediam dia após dia, a poeira se levantava em redemoinhos, feitos pequenos ciclones, penetrando até nos cômodos, se abertos, dos apartamentos. Mas tudo melhorou, anos depois, com o plantio que fizeram os prefeitos, nomeados para governar a cidade, de gramados e árvores nas quadras residenciais. E, em Brasília, fui me acomodando, e a família também. As filhas (Márcia e Kátia) em franco aprendizado no Jardim de Infância da própria quadra em que vivíamos. Depois, em colégio particular de freiras, que, naquele início, já se estabeleciam no novo Distrito Federal. Minha esposa (Ezetilde), como enfermeira (Ana Neri), logo fez concurso para a Fundação Hospitalar do Distrito Federal. E, por felicidade, foi nomeada, pouco tempo depois, para chefiar um Posto de Saúde nas entre quadras 308/309, a um passo do nosso bloco residencial. Em Brasília, nasceram os netos Amanda e Paulo Guilherme, filhos de Márcia, e Marcel, filho de Kátia.

O clima da atmosfera pesada do regime militar dominava o País. “Podemos definir a Ditadura Militar como sendo o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Esta época vai de 1964 a 1985. Caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.” Só em 1985, respiramos aliviados, depois de 21 anos, em que a bota pesada dos militares tirou o pé das nossas cabeças. Só para registrar, os ditadores militares foram os generais Castello Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Medici (1969-1974 e João Baptista Figueiredo (1979-1985). Naquele período, muitos brasileiros, que combatiam o regime de exceção, uns foram presos e torturados, outros “desapareceram”, e alguns se exilaram em embaixadas estrangeiras, partindo dali para o exílio em países em que prevalecia a democracia. Não obstante os percalços, as humilhações por que também passou o criador de Brasília, prevaleceram os ideais do grande democrata que foi JUSCELINO KUBISTCHEK DE OLIVEIRA. E Brasília se consolidou como a Capital de todos os brasileiros. Aquele sim, foi o “cara”

(A ele, a minha homenagem)

Devo, posso dizer, o que amealhei, juntamente com Ezetilde, a este brasileiro, que, de uma forma ou de outra, estimulou-me a deixar o Rio de Janeiro, em 1962, para viver em Brasília, quando ainda a poeira vermelha da terra virada e revirada, para a construção da Nova Capital, fazia redemoinhos no céu do Planalto Central, em certas pancadas de vento. Vim no intuito de fazer o chamado pé-de-meia e voltar para a Cidade Maravilhosa. E a mais bonita do mundo. Mas, fui ficando, ficando e... fiquei. O Banco, entre outras vantagens, deu-me a oportunidade de morar bem, como a outros colegas, num apartamento (recém-construído naquele ano de 1962), de cento e poucos metros quadrados. Anos depois, tornei-me proprietário do imóvel, como aconteceu também com outros colegas, que vieram em busca da realização do sonho de JK. Aposentei-me em 1983. Trabalhei, além da Agência Centro (a Central ainda era no Rio), em subagências, que funcionam em repartições públicas. Chefiei a do Tribunal de Contas da União, do Palácio do Planalto (governo Médici e João Figueiredo), da ESNI e do DNER, onde me aposentei. Nesse tempo já residia no Lago Sul, na Q.I. 9, do Conjunto 7, Casa 12, onde, com a esposa e filhas, desfrutei de bons momentos, despertando-me até a vontade de pintar quadros a óleo, sem qualquer pretensão de concorrer com Michelangelo, Leonardo da Vinci, Picasso, Rembrant, nem com o nosso conceituado Candido Portinari. Abaixo, as provas do meu “talento”, que deixo para a posteridade, para a esposa, filhas e netos lembrarem de mim, se primeiro me for para outra dimensão, que, talvez, exista. A certeza disto, de um lugar verdadeiramente de paz, amor, fraternidade e tudo mais que seja melhor do que nesta vida material, de carne e osso, ainda tenho as minhas dúvidas. Perdoem-me os crentes, digo, os religiosos de todos os credos.
Deixando de lado as pinturas, enveredei-me pelos caminhos da informática, depois de ter tido como distração o rádio PX, com que me comunicava com alguns afeiçoados de outros países.

A Internet deu os seus primeiros passos no Brasil em 1988. Como milhões e milhares de pessoas pelo mundo, a Internet também me fascinou. Aprendi, sem qualquer ensinamento, ou curso, para este fim, aprendi a lidar com o computador, que, entre novidades que eu desconhecia, em muito me facilitou a escrever, bem melhor do que nas ultrapassadas máquinas de escrever Remington, principalmente trabalhos literários, poesias, contos e crônicas, uns até publicados em sites, desta natureza, na Internet, como este meu soneto abaixo, ilustrado por mim, editado no Recanto das Letras, que é um importante site de literatura da Internet.

NÓS

Nós, que outrora, vivemos tão felizes,
Compartilhando o mesmo amor tão puro.
E hoje aceitando, em vez de luz, o escuro
Das nossas diferenças e deslizes.

Mas, mesmo assim, eu te confesso. Eu juro.
E mesmo que mais nada valorizes,
Julgando-nos, então, dois infelizes,
Eu não perdi a crença de um futuro,

Em que, talvez, aquele amor da gente,
Que a minha alma, abatida, ainda sente,
Torne a acender a chama... a crepitar.

Aquele nosso amor, de ontem, tão forte,
Está doente, agora, quase à morte,
Necessitando se ressuscitar!

Nos meus 80 anos, completados em 15 de agosto de 2011, fiz este outro soneto, editado abaixo. Cheguei ao ponto em que a estrada já não é mais aquela reta que se perde no horizonte. Daqui para diante o “asfalto” vai se desgastando. Contudo, ainda vou caminhando sob o peso dos meus

OITENTA ANOS

Agora, só me restam poucos passos
Em minha vida. E nesta caminhada,
Quase chegando ao ponto de parada,
P ´ra repensar vitórias e fracassos.

Vitórias? Tive algumas nesta estrada,
Sem vivas, sem aplausos, nem abraços.
E, hoje, já vejo os derradeiros traços
Do que resta de mim, que é quase nada...

Anos são tantos, bem ou mal vividos,
De desejos e planos, uns perdidos;
Outros tantos, em pouco, alcançados...

E nos meus oitenta anos, penso, agora,
Que não esteja distante a infausta hora
De remir - face à morte - os meus pecados!
                                                                         Paulo de Góes Andrade








































































































PEGUEI UM “ita” NO NOR...DESTE



Aos poucos Maceió ia se distanciando, perdendo-se no horizonte, enquanto o navio entrava em mar aberto no rumo do Sul. O destino era o Rio de Janeiro. A bordo estava eu, “marinheiro de primeira viagem”. Ali, num dos “itas” da Cia. Nacional de Navegação Costeira, que competia, naquele tempo, com a Cia. de Navegação Lloyd Brasileiro, na costa brasileira, de Manaus a Porto Alegre. E até mesmo para a América do Norte. Se não me falha a memória, era o Itapagé ou o Itanagé, da Costeira, como era chamada, em que eu viajava. No cais, na minha despedida, ficaram meu primo-irmão Francisquinho (o “imortal” Francisco Valois, da Academia Alagoana de Letras) e o nosso tio José de Góis, que, à época, trabalhava num banco particular, em Maceió. Não esqueci, até hoje, os olhos marejados do amigo primo, que foi filho único, considerando-me, assim, um irmão. Não teve a infância com seus pais, que faleceram muito antes da sua adolescência. Ficou sob os cuidados da nossa avó e do nosso tio, que o criaram com muito rigor, castrando-lhe a liberdade que eu e outros meninos tivemos na nossa pré-adolescência, convivendo com os nossos pais, mais liberais em algumas atitudes. Considerava-me, pois, um irmão, eu, que o arrastava para certas “aventuras” concernentes à nossa idade.



(Maceió à distância)

Era final do mês de junho de 1953. Não me recordo o dia exato em que embarquei, com o coração pesado de lembranças e saudades, mas com a vontade única, ansioso mesmo de ter um emprego, livrando-me, assim, da dependência financeira dos meus pais. Infelizmente não tinha sido aprovado no vestibular para medicina no Recife, na Universidade Federal de Pernambuco. A minha mãe, no que lhe era possível, dava-me algum dinheiro para eu não ficar de bolso “furado”. O meu pai, por sua vez, era indiferente a que eu, e os irmãos necessitassem com relação a dinheiro. Era, posso dizer, meio “usura”. Providências, como esta e outras, eram tomadas por dona Alfredina, minha inesquecível mãe.

Então, talvez por sugestão dela, o irmão Afrânio, que já trabalhava havia mais tempo na Direção Geral do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, conseguiu, não sei com quem, a minha nomeação para o quadro de Portaria, para servir em São Paulo. Assim, não era uma aventura a que eu iria me submeter. Não ia eu à procura de um meio de vida ali, tão distante, como já fizeram tantos nordestinos necessitados, porque já levava na bagagem um documento que me credenciava, me dava o direito de assumir uma ocupação no Banco do Brasil. Naquele ano, em 20 de março, falecia Graciliano Ramos, escritor alagoano, autor de Memórias do Cárcere e outras obras consagradas. Nascia, no dia 03 daquele mesmo mês, o “galinho de Quintino”, o nosso Zico, ou melhor, Arthur Antunes Coimbra, um dos melhores jogadores brasileiros, atuando no Flamengo, esse time que tem a maior torcida do Brasil. Outros fatos aconteceram, que junto aos que experimentei comigo mesmo. No dia 15 de agosto daquele ano, completaria eu 22 anos, pois sou de 1931. Hoje, nos meus 79 anos, admiro a minha coragem e disposição de ter enfrentado aquele meu início de trabalho num “mundo” completamente estranho, que era São Paulo para mim, vindo da distante Alagoas, sem qualquer experiência de vida e de trabalho. Mas Deus me concedeu força e coragem. Fui, vi e venci, quase imitando o romano Julio César que disse: veni, vidi, vici (vim, vi e venci).

O vapor Itapagé, ou Itanagé, singrava lentamente as águas azuis do nosso oceano Atlântico, umas vezes sereno, sem qualquer oscilação, outras vezes obedecendo ao balançar do mar, quando os ventos marinhos açoitavam as águas, deixando-me enjoado, como se estivesse saído de uma rodada de mistura de bebidas alcoólicas, vendo o mundo girar ao meu redor, sacudindo o meu estômago quase vazio, já que havia rejeitado de pronto as iguarias, não muito convidativas, que ofereciam na sala de refeições para o jantar. Ali se iniciou o meu sofrimento, acrescido da saudade dos entes queridos que se perderam no horizonte da minha imaginação. A tristeza da minha mãe, seus olhos cheios de lágrimas era um filme constante rodado na tela do meu pensamento, quando a abracei, deixando o lar em que vivia até então, lá no interior do meu Estado.

A bordo, não tive ideia do tempo decorrido de Maceió a Salvador. Estava, como se diz, fora de órbita. Devia ter sido um dia, dois. Não sei bem. Ali estava eu, prostrado, quase em coma, numa espreguiçadeira, no convés, onde passei a noite. Estava, na verdade, sem noção do tempo. Não tive condições físicas, na primeira noite, de entrar no camarote. Das vigias (janelas), vendo o mar oscilando para a direita e para a esquerda, sem dúvida, o meu tormento haveria de aumentar, preferindo, pois, permanecer no convés, donde ainda dava para vislumbrar a grandeza do firmamento ainda claro e a chegada, em seguida, da noite salpicada de estrelas, inúmeras cintilantes como diamantes. O cheiro constante de tinta a óleo, para conservação de peças de ferro que compunham boa parte do navio, para evitar a corrosão da maresia, contribuía para o meu estado. Hoje, bem diferente daquela época dos anos 50, os transatlânticos devem ser construídos de materiais, inoxidáveis, sem aquela necessidade premente, obrigatória mesmo, de pintar, semanalmente talvez, as esquadrias, corrimãos, degraus etc, que compunham partes dos navios de passageiros e navios mercantes.



O “ita”, em que eu viajava, um dia e meio depois, atracou no Cais do Porto de Salvador. A Bahia já era famosa, mesmo sem se falar que foi a cidade-mãe do Brasil, quando ali desembarcaram, sob o comando do português Pedro Álvares Cabral, os nossos primeiros colonizadores. Estava eu na Bahia de Rui Barbosa, de Castro Alves. A terra de Jorge Amado, autor de Capitães de Areia, de Dona Flor e Seus Dois Maridos e outros romances. Dorival Caymmi já tinha fama, não só por ser o berço também do grande compositor e cantor, que em 1953 (ano que parti para o Sul) tinha 39 anos de idade. Estávamos em Salvador das baianas do Pelourinho, com suas roupas características, de turbantes e saias rodadas com estampas coloridas, por trás dos seus tabuleiros vistosos de vatapás e acarajés. O Elevador Lacerda já era ponto turístico para aqueles, ainda poucos, que visitavam Salvador. Alguns passageiros embarcaram ali, destinados, por certo, ao Rio de Janeiro. Não sei quanto tempo o nosso navio ficou ali atracado. Eu ainda estava fora de órbita, como disse, vendo o mundo girar, entregue ao enjoo que me consumia. Mas alguém, lembro-me que era uma mulher, dos embarcados, viu o meu estado deplorável, deitado como estava numa espreguiçadeira, sem qualquer ânimo, e me ofereu um comprimido, que só tempos depois tomei conhecimento do nome do medicamento, que era “Dramin”. Um “santo” remédio. Dali, até atracar o navio no porto do Rio de Janeiro, mesmo se acontecessem oscilações no mar dos Abrolhos, segundo diziam, aconteceriam, nada mais senti. O mar, felizmente, esteve sereno naquela região.



O dia estava clareando quando entramos na bela Baía da Guanabara. Conferi o meu relógio. Passava das 6 horas da manhã. O céu da Cidade Maravilhosa estava mesclado de dourado, pintado pelos primeiros raios do sol. O navio aproximava-se do Cais do Porto e da vigia do meu camarote vi, pela primeira vez, parte da beleza do Rio, tendo ao fundo um edifício de vários andares, que depois vim saber que se tratava do Edifício “A Noite” (“...construído em fins dos anos 20, com a nova tecnologia do concreto armado, é considerado o introdutor da arquitetura em estilo artdecó no Brasil. Foi o primeiro arranha céu da cidade e em seu projeto foi usado além do calculo estrutural, a ação dos ventos sobre a estrutura. Em seu lugar havia o casarão do Liceu Literário Português, transferido para o Largo da Carioca...”). No prédio, depois vim tomar conhecimento, entre outras atividades, estava instalada a famosa Radio Nacional, que se escutava, com prioridade, em todo território brasileiro face aos seus excelentes noticiários, bem como os programas artísticos, destacando-se o Programa César de Alencar, o de Calouros de Ari Barroso e de Jararaca e Ratinho, que muito nos divertiam com as suas irreverências, incluindo críticas com “certos” políticos da época. Atracado o Itapagé (ou Itaberá), os passageiros estavam liberados para o desembarque. E lá fui eu também em meio aos demais descendo a escada de acesso à terra firme do Cais da Praça Mauá. Senti-me “um estranho no ninho”, diante da cidade grande, num mundo diferente para mim, longe, pois, do meu Estado natal, dos meus familiares, da bem mais tranqüila Maceió, que ficou bem longe. Era hora de respirar fundo e enfrentar a região sudeste do Brasil, mesmo sem experiência, nos meus 22 anos de idade, quanto ao modus vivendi da gente carioca e, dois dias depois, do povo de São Paulo (Capital), para onde segui para trabalhar no Banco do Brasil. No Cais, motoristas de táxis disputavam os desembarcados, se oferecendo para uns e para outros (incluindo-me) para nos levar aos nossos destinos no Rio. Afinal, com três companheiros de viagem, ficou ajustado determinado preço, que não lembro o valor em cruzeiros (moeda da época), com um taxista, para o nosso itinerário. Fiz, assim, um ligeiro passeio turístico pela cidade. Algumas paisagens do Rio me encantaram. O meu destino, sendo eu o último, foi o bairro de Botafogo, onde residia um irmão, que se justificou por não ter ido à minha chegada porque “se confundiu” com a hora que o navio chegaria. Engoli a seco sua “justificativa”. O tempo, naquele mês de julho, estava frio e, com a umidade, muito me incomodava. Devia está na casa dos 23° graus, o que nunca experimentei em Alagoas. Mas, coisa bem pior provei em São Paulo, quando ali desembarquei dois dias depois que deixei o Rio de Janeiro. Na Rodoviária, na Capital dos paulistas, amarguei a mesma decepção. Um conhecido, que já trabalhava no Banco do Brasil, por sinal, vindo também de Alagoas, já vivendo ali por algum tempo, não me esperava, como prometido em correspondência que trocamos. Depois de percorridos os 400 quilômetros, que ligam o Rio a São Paulo, na famosa Via Dutra, o ônibus chegou à Rodoviária, encostando na parada determinada para os veículos interestaduais. O frio, em São Paulo, nos seus quase 800 metros de altitude, incomodava-me sobremaneira. Devia andar pela casa dos 18 graus, que para mim, vindo do Nordeste, era um castigo. Os passageiros se dispersaram entre muitas outras pessoas, em busca, assim, dos seus destinos, apanhando táxis ou até mesmo pegando alguns ônibus que, com muita eficiência, circulavam para vários pontos da cidade. O meu destino foi o bairro do Jabaquara, na Avenida do mesmo nome, onde se situava a agência do Banco do Brasil em que eu tomaria posse, numa quarta-feira, naquele distante 8 de julho de 1953. O taxista ajudou-me a procurar uma hospedaria. Nem nome de algum hotel ou pousada trazia comigo. Confiei no amigo, que, infelizmente, falhou. Afinal, depois de pelo menos 30 a 40 minutos rodando de táxi, pelas ruas do bairro, dei com o nome de uma “pensão”, “hospedaria”, sei lá o quê. Já era fim de tarde. O frio era intenso. Paguei a corrida de táxi. E me vi, naquele instante, só. Eu e Deus a enfrentar o desconhecido da grande cidade. Entrei na modesta hospedaria, identificando-me à pessoa que me atendeu num simples balcão da sala de espera e pedi um quarto, que tive de dividir com um dois indivíduos, que ali já eram hóspedes.

Hoje, relembrando aqueles momentos por que passei, chegando sozinho em São Paulo, vindo de Alagoas, nos meus inexperientes 22 anos de idade, considero-me um “herói de batalhas quase vencidas”, porque, dali para diante, muita luta tinha ainda para enfrentar.



(O bonde em S. Paulo)

A primeira noite, na modesta pensão, ou hospedaria, dormi com a própria roupa com que viajei do Rio para São Paulo, confeccionada em casimira, que é um tecido leve de lã, azul-escuro, não me desfazendo nem do paletó, tipo jaquetão. A friagem era de doer na alma. O cobertor foi insuficiente para me aquecer. O pouco dinheiro, parte do adiantamento que o Banco, em Maceió, me fez, que eu trazia, acomodei-o no bolso interno do jaquetão, sem qualquer possibilidade de perdê-lo, nem ser roubado. No quarto, dormiam mais dois hóspedes, se não estou enganado. Na manhã seguinte, depois de um razoável café-da-manhã, tomado de uma disposição que Deus me deu, fui à luta em busca de um lugar melhor para me hospedar. Aí já era uma casa até vistosa, protegida por uma mureta na frente, onde um pequeno portão dava acesso a três lances de degraus que levavam à porta principal, ladeada por duas janelas grandes. A fachada era de um verde-claro ainda conservado, no estilo antigo-moderno, se assim pude considerar. E, melhor, localizada na Avenida Jabaquara, onde, um pouco adiante, não chegando a um quilômetro, estava a agência do Banco. Como a hospedagem anterior, não havia quartos individuais. Então, tive, como companheiro, um cidadão modesto, mas simpático, de pouca conversa. Do meu jeito. Não era nordestino, pelo seu jeito de falar. Como carregava no “r” (interiôrr...), julguei-o paranaense ou mesmo de qualquer cidade do interior de São Paulo. Não me lembro mais do seu nome. Às 5 da matina, já estava de pé. Era padeiro, como me disse. Saía, assim, àquela hora para o batente, não sei aonde. E eu, como a luz que acendia, despertava. E o que mais de incomodava não era tanto a luz que iluminava todo o quarto, mas o mau cheiro que exalava dos pés do companheiro, dono de um chulé de “matar gambá”, calçando os seus sapatos, se trocando, enfim, para ir embora. Ali, naquela hospedaria, felizmente, devo ter ficado por uma semana, no máximo.

Apresentei-me no dia 8 de julho de 1953, uma quarta-feira, à administração da agência do Banco do Brasil, que, àquela época, denominava-se Metropolitana Bosque da Saúde, em vista da sua aproximação ao bairro do mesmo nome. Na verdade, o prédio situava-se na Avenida Jabaquara. Não me lembro o número. E, entrosando-me, então, com alguns colegas, conhecedores do bairro, mudei-me para outro lugar, alojando-me mais próximo do Banco, passando a dividir um quarto com um companheiro de trabalho, num apartamento, de uma senhora viúva, que ficava no andar superior de um prédio comercial, que tínhamos acesso pelos poucos degraus de uma escada, de uma porta ao lado, para subir. Ali ficava também o “comércio” do Fuad, um tipo branquelo, muito simpático, descendente, o que me pareceu, de libanês ou turco. Era um pequeno armazém, uma espécie de casa de conveniência, onde se encontrava quase de tudo um pouco. Geralmente, nosso desjejum, meu e do colega, era feito ali, na bodega do Fuad. O almoço, com outros colegas, era na residência de uma família, nas imediações. Era uma comida caseira, mas muito bem preparada pela própria dona da casa.



(Viaduto do Chá. Ano 50)

O Banco ainda adotava o velho estilo de administradores de agências, formado por um gerente e um contador que as figuras máximas que mandavam no “padaço”, quero dizer na agência. O gerente isolava-se em uma sala, fora do recinto da Contabilidade, onde trabalhava o funcionalismo, comandado pelo Contador. Um longo balcão, onde ficava um guichê de caixa, separava a clientela dos funcionários. Geralmente, era assim em todas as demais unidades, pelo Brasil afora, naquela época. Cabia ao Contador, entre outras tarefas que lhe competiam, receber os novos funcionários. Então, postei-me, como um recruta, em frente a um cidadão que tinha a cara mais de um boxeador, de um sargentão, de cara-amarrada, do que de um executivo, embora bem vestido, com camisa de mangas curtas, mostrando os braços musculosos e “enforcado” numa gravata, que era o sr. Paulo Bastos, entregando-lhe a minha carta de apresentação, recebida na agência do BB em Maceió. Dali para diante era só cumprir as determinações que me foram atribuídas, passando a respeitar, à risca, a “batuta” daquele “maestro,” que administrava com mão-de-ferro. Qualquer deslize, por mais simples que fosse praticado, não só por mim, mas por qualquer outro funcionário, mesmo superior ao cargo que eu exercia de servidor de Portaria, era advertido pelo sr. Paulo Bastos. O Gerente, sr. Orlando Baldi, mais parecendo o “proprietário” do Banco, pela imponência de sua maneira de ser, envergando, costumeiramente, seus trajes elegantes (calça, paletó, camisa e gravata), fechava-se na sua sala, bem decorada, por sinal, só se importando com a “fina” clientela, de empresários e comerciantes da região, que o procuravam para transações bancárias. Os demais afazeres, ou deveres, ficavam a cargo do Contador. A agência mais parecia um internato de meninos disciplinados, pois para isso tinha um disciplinador - sr. Paulo Bastos, do que mesmo com uma casa de negócios bancários. O rigor era tanto, até para os 15 minutos que tínhamos para o lanche, que antes fazíamos no bar do Mariano, um português, ou descendente, ao lado do prédio, onde desfrutávamos daqueles momentos de liberdade para trocarmos as nossas idéias, fomos proibidos. Mariano, então, trazia os nossos pedidos, entrando na agência com um enorme tabuleiro repleto de copos com café com leite e sanduiches de pão com queijo, ou misto com queijo e presunto, que conduzia até a Portaria, onde, cada um pegava o seu pedido, encaminhando-se, como criancinhas de jardins-de-infância, às suas mesas de trabalho. Tivemos que acatar, como uns cordeirinhos, as determinações ditatoriais do Contador. E o lanche passou a ser feito, por cada um de nós, em nossas mesas de trabalho. O pessoal de Portaria, em que eu me incluía, se isolava, para o lanche, numa sala, nos fundos do prédio, que abrigava os serviços concernentes. Era um verdadeiro regime de quartel, onde os sargentões trazem os recrutas no cabresto. E ninguém se manifestava. O medo e a covardia reinavam entre todos nós. Ninguém tinha a ousadia de se manifestar, por escrito, à Direção Geral do Banco, no Rio de Janeiro, sobre aquele “totalitarismo” reinante na Agência.

Um certo dia, fui designado pelo Contador – sr. Paulo Bastos, para levar qualquer coisa, não me recordo o quê, à Agencia Central, no centro da cidade. Aproveitei o ensejo e dei umas voltas rápidas no centro comercial, vendo algumas lojas, à procura de uma roupa (calça e camisa) para mim. Não levei mais do que uma hora nessa busca. Não me recordo se a minha ida e volta foi feita de táxi. Acho que foi mesmo num dos bondes que trafegavam naquela linha do Jabaquara às imediações da Praça da Sé. Por sinal, esse tipo de transporte era perfeito em São Paulo. Chegado de volta à agência fui logo solicitado a comparecer à mesa do sr. Paulo Bastos, que me interrogou qual tinha sido a razão da minha demora de retornar. Sem outra alternativa, inventei que havia me confundido com certas ruas da cidade, ficando meio perdido lá no centro, pelo que me aconselhou, com a sua peculiar maneira de sargentão, a fazer reconhecimentos noturnos do centro de São Paulo. Era uma dureza trabalhar ali. O ambiente mais parecia um quartel, com as disciplinas impostas pelos dois administradores, do que mesmo uma agência bancária.



Av. São João (anos 50)

O gerente, como citei atrás, fechado no seu gabinete, parecido até um rei, deixava os seus “súditos” (nós, funcionários) por conta do seu imediato, que dispunha de ‘carta branca’ para resolver todos assuntos relacionados com a Contadoria, incluindo-se, claro, o funcionalismo da agência. Certo dia, no entanto, logo que chegou para o expediente interno, das 8 às 10 horas, o sr. Orlando Baldi não foi direto para a sua sala, dirigiu-se à sala da Portaria chamando o servente Tanil, que era uma figura, alegre, brincalhão como ele só. Seu primeiro nome era Elias. A “missão” do Tanil para o gerente era limpar a sola de um dos seus sapatos, grudada de excremento de cachorro, em que pisou logo que desceu do seu carro em frente à agência. O “lorde”, que não era inglês, mas um paulista ou paulistano muito prepotente, não podia, ele mesmo fazer aquele “serviço”. Era humilhante, sem dúvida, para a sua posição de “mandatário” daquele território do Banco do Brasil. Tanil, como servente, cabia-lhe aquela missão. Mas, o espirituoso e bem humorado funcionário não deixou por menos. E, como vingança, na hora de levar a bandeja com o cafezinho para o “chefão”, com agilidade, deu um bote com a mão numa mosca que circulava no recinto da Portaria, esmagando o inseto junto com o açúcar já na xícara, fazendo uma mistura em que adicionou o café quente. Retirou com uma colherzinha a sujeira da superfície do líquido e, imediatamente, foi servir o habitual cafezinho ao Gerente, que bebericou aos pouquinhos o “moscafé” do Tanil, vingado, assim, da humilhação por que passou limpando a bosta de cachorro grudada num dos sapatos do sr. Orlando Baldi, que a tudo assistia, em pé, com a perna cruzada, virada para os olhos de Tanil, agachado, com um pequeno instrumento na mão, fazendo o “trabalho”.

Aquele servente era quem “desopilava os nossos fígados”, saturados do ambiente de serviço constrangedor a que nos submetiam aqueles administradores, com as suas tiradas engraçadas. Lembro-me de uma ocasião em que ele chegou no nosso recinto da Portaria, depois da limpeza dos dois W.Cs., que serviam à agência. Ainda com os apetrechos (vassoura, balde, panos-de-chão etc) nas duas mãos, com aquela sua maneira hilariante de se expressar, contou que estava com o braço direito por demais cansado de tanta força que fez para empurrar sanitário abaixo, com o cabo da vassoura, um volumoso excremento, que tinha certeza, era “fruto” do “sêo” Aristides, pois tinha sido ele o último funcionário a utilizar o sanitário. “Sêo” Aristides, escriturário, era um tipo de estatura mediana, meio entroncado, quase sem pescoço, moreno. Assim, pelo biotipo do funcionário, conforme se expressou Tanil, aquele “tijolo” só podia ter saído do Aristides. Essa e outras daquele servente alegravam os nossos rápidos instantes de contato, suavizavam o ambiente pesado que reinava naquela dependência do Banco.

Tive bom relacionamento, não só com os colegas do quadro de Portaria, a que eu pertencia, bem como com os escriturários, o pessoal da Contabilidade. Consideravam-me, talvez, por reconhecimento, modéstia à parte, ao meu nível cultural. Eu tinha deixado Alagoas sem ter tido êxito no vestibular de medicina na Universidade Federal de Pernambuco. Sabiam que eu tinha instrução ginasial e colegial. Talvez até mesmo o sr. Baldi tenha reconhecido a minha instrução escolar, colocando-me como recepcionista na ante-sala do seu gabinete. Ali eu ficava lhe anunciando esse ou aquele cliente que chegasse para tratar de assuntos concernentes aos interesses do Banco. Ali, na minha mesa, como os demais funcionários, atendendo a “ordem-de-serviço” do Sr. Contador, eu fazia o meu lanche, que, geralmente, era um copo de café com leite e um sanduiche de queijo com presunto ou mortadela. Uma tarde daquelas deixou-me num sufoco que nunca havia experimentado. O gerente atendia a um cliente no seu gabinete, quando, por uma distração, bati com a mão esquerda no meu copo de café, derramando todo o líquido tanto na mesa como pelo carpete verde que forrava o chão do ambiente da minha sala. O pavor que me tomou de ser flagrado pelo gerente naquela situação, fez com que eu limpasse a sujeira, como por milagre, por menos de cinco minutos. Corri até a sala da Portaria, trazendo um pano de chão bem molhado, que me salvou de uma repreensão, possivelmente, temia eu, face ao rigor que reinava naquela agência.

(Av. São João com a Ipiranga)

Em São Paulo permaneci por quase um ano. Ainda assisti às festividades do IV Centenário da fundação da cidade (25 de janeiro de 1554). Em 1954, vi de perto o orgulho dos paulistanos, e com muita razão, pelas homenagens transcorridas com festejos cívicos e populares, desde as primeiras horas da manhã. O dia todo foi de festa. E eu ali, nordestino, como tantos outros, aqueles que chegaram lá bem antes de mim, que contribuíram para a grandeza da cidade, os apelidados “paraíbas” e “baianos”, de pouca instrução escolar até, mas corajosos, que em muito trabalharam, pesado, é bom frisar, para a construção dos alicerces que levantaram esse monumento que hoje é São Paulo, que, de fato, muito deve também aos valorosos nordestinos.





Aprendi a gostar da cidade, mesmo sofrendo com a friagem úmida do seu inverno, que parecia doer até nos ossos da gente. E à noite então, na hora de dormir...!? Pelo amor de Deus! A propósito, fui aconselhado, não sei se por algum colega, a forrar de jornal o colchão da minha cama, deixando por cima o lençol que a cobria. Dava algum resultado mesmo. Não entendi a “química” daquele procedimento. A composição do papel-jornal deve ter algo diferente dos papéis comuns, os que servem para empacotamento de mercadorias. A razão é tanta que, quando compramos nos mercados frutos ainda verdes, somos aconselhados a embrulhá-los em jornais, adiantando, assim, o seu amadurecimento. Aquele conselho que recebi, muito me ajudou a enfrentar as noites “geladas” da Paulicéia, quando, algumas vezes acompanhadas daquela garoa, lembrando até, como diziam, o “fog” que acontece em Londres. Gostava de fazer lanches, ou comer pedaços de pizzas, nos domingos, nas agradáveis e freqüentadas lanchonetes da Avenida São João ou da Ipiranga, onde também se concentravam os bons, bons mesmo, cinemas. A famosa, hoje, Avenida Paulista ainda não tinha nascido. Segundo dados históricos, ela foi inaugurada, com o nome de Avenida das Acácias, em 8 de dezembro de 1981, passando logo depois a chamar-se Avenida Paulista em homenagem ao seu povo. São Paulo ainda não era essa “selva de pedra”, esse mundo de concreto-armado” de hoje. A gente contava nos dedos os edifícios mais altos, construídos na zona central da cidade, destacando-se o prédio do Banespa, da Agência Centro do Banco do Brasil. O primeiro arranha-céu – o Edifício Martinelli, que recebeu o nome do seu construtor, Giusuppe Martinelli, foi iniciado em 1924 e inaugurado em 1929, sendo o primeiro arranha-céu do Brasil e da América Latina, segundo dados históricos.



(Edifício Martinelli)

Os shoppings não existiam ainda, nem metrô, que só em 1969 foi criada uma Companhia para construir aquele meio de transporte para São Paulo. Os bondes, de primeiríssima qualidade, atendiam muito bem o serviço urbano. O cruzamento da São João com a Ipiranga era, naquela época, o “point” da vida noturna da cidade, onde se misturavam também, discretamente, pederastas e prostitutas em busca de aventuras em troca de dinheiro, claro. Não havia motéis ainda. Os encontros íntimos se faziam nos sobrados de ruas adjacentes. Na Avenida Rio Branco, já pelas 21 horas, havia o “trottoir” de mundanas para o comércio do sexo. Alguns “dancings”, naquelas redondezas, abriam suas portas para maiores de 18 anos. Pagava-se para dançar. E ficava por conta da dançarina, que conduzia um pequeno alicate furador, o valor a pagar na saída. Cada picotada no cartão valia um tanto (?). A cidade já contava com uma razoável vida cultural, sendo o imponente Teatro Municipal o foco das apresentações de peças teatrais e concertos de orquestras filarmônicas. Os artistas populares já se destacavam, entre eles, Adoniram Barbosa com a sua “Saudosa Maloca”, Trem das Onze” e outras músicas que muito bem caíram no gosto do povo. O conjunto vocal “Demônios da Garoa” fazia também muito sucesso na popularidade da vida paulistana. Isaurinha Garcia e Hebe Camargo eram destaques entre outras cantoras que se apresntavam em auditórios das Rádios, que transmitiam seus programas, que ainda não eram em FM (frequência modulada), não só para a Capital como para todo território nacional.

A Praça da Sé e a Praça da República, como o Viaduto do Chá, o Viaduto Santa Efigênia, o Largo do Arouche e Largo de São Bento, durante o dia, fervilhavam de gente se cruzando em sentidos contrários, por sinal, bem vestida; muitos engravatados até, que deviam trabalhar, por certo, em escritórios, repartições municipais e bancos, Outra coisa que registro aqui, é que a violência nem sonhava ainda nascer nas ruas e bairros de São Paulo. A vida transcorria em perfeita paz. Longe estavam esses dias nebulosos, tristes da atual “Cracolândia” e dos donos de pontos de drogas, que hoje proliferam, não só na periferia, mas em determinados lugares do centro da cidade. Não se via miseráveis arranchados embaixo de viadutos, como hoje, com toda a opulência dos dias atuais de São Paulo. O número de veículos transitando era bem menor, não deixando margem para o que acontece atualmente, com quilômetros de engarrafamentos, como acontece agora, todo dia, nas Marginais Tietê e Pinheiros, e nos finais-de-semana e feriados, quando os paulistanos deixam a cidade em busca do litoral. É o resultado do progresso com as suas inevitáveis consequências.

Não me recordo, na minha despedida, transferido que fui, por permuta, para o Rio, se me despedi dos “chefões” da Agência Metropolitana Bosque da Saúde, apertando as mãos “de ferro” daqueles senhores. Vi tanta injustiça cometida por eles, administradores, com o pacato funcionalismo, tanto da Contabilidade como da Portaria, que nem fui dizer “até logo” àqueles “ditadores”. Se me despedi, foi com um curto “adeus”. E bem melhor teria sido um “até nunca mais”. Despedi-me, que me lembro, do Sr. Nelson Gaia Penteado, um paulista, educado, que era Chefe do Cadastro, que também não “engolia” aquela disciplina imposta na Agência, bem como do Hélio, Euclides, Serrano, Carioca, Gaúcho, Bolinha, Zequinha, Marcelo e Nélio. Aliás, com esse último que enumerei, aconteceu um fato até hilariante. Ele não perdia qualquer oportunidade para trocar algumas palavras com esse ou aquele colega. Um dia, ele, que devia ter ido ao WC. E, na volta, parou na mesa de outro colega para um ligeiro papinho, que não foi muito adiante porque o Contador, de que nada escapava de sua vigilância, levantou-se da sua poltrona e foi direto ao Nélio perguntar o quê ele fazia ali. Nélio, com certo deboche, respondeu de pronto que estava “botando a conversa em dia”. Não sei qual foi a reação do sr. Bastos. Marcelo, entre os colegas acima, pernambucano, chegado à Agência, vindo do Recife, depois de mim, não agüentou o clima frio de São Paulo e, muito especialmente, o regime adotado pelos administradores do Banco. Não sei como conseguiu voltar tão logo para o Recife, porque não chegou a completar um ano trabalhando ali. Foi embora primeiro do que eu. Uns eram apelidados, como escrevi acima. Tudo fazia parte da boa camaradagem que reinava entre os colegas. Aquela dependência do Banco, tempos depois, passou a chamar-se Metropolitana Jabaquara. Elias Tanil, aquele que esmagou uma mosca no café do Gerente, foi o único que esteve comigo na Rodoviária até a partida do meu ônibus para o Rio, às 23 horas. Tempos depois, ainda voltei a São Paulo, acho que em 1957 ou 1958, para prestar concurso interno para a carreira de Contabilidade. E 1959, casado, ali passei cinco dias em “lua-de-mel”. Pisei, outra vez, a terra daquela grande cidade; hoje, a maior da América Latina e a 4ª maior aglomeração urbana do planeta, tendo mais de 11 milhões de habitantes, fundada pelos jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta em 25 Janeiro de 1554. Quero acrescentar, por fim, que São Paulo é também um orgulho para nós, embora não sejamos paulistanos, mas somos brasileiros, iguais a eles, irmanados, pois, no mesmo espírito de brasilidade.

Estava eu (transferido), então, para a Cidade Maravilhosa, para aquele Rio de Janeiro, admirado não só pelo seu povo, pelos cariocas, mas pelos brasileiros de todos os recantos do Brasil. Era ainda o Distrito Federal, onde a Presidência da República, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados ditavam as normas da política nacional. “Foi capital do Brasil Colônia a partir de 1763, capital do Império Português na época das invasões de Napoleão, capital do Império do Brasil, e capital da República até a inauguração de Brasília, na década de 1960. É também conhecida por Cidade Maravilhosa, e aquele que nela nasce é chamado de carioca.

(Monroe – Ed. menor)

No Rio, vivi o 2º Capítulo da minha vida até o ano 1962. No período ali vivido, ainda existia o Palácio Monroe, que se vê na foto (prédio menor), criminosamente demolido em 1976, por determinação do general-presidente Ernesto Geisel, com o total apoio de Roberto Marinho e do arquiteto Lúcio Costa. O Globo, nos editoriais do seu presidente, Roberto Marinho, alegava que o prédio atrapalhava o trânsito na Av. Rio Branco. E, por sua vez, Lúcio Costa justificava dizendo que o Monroe iria causar problemas na construção do metrô do Rio, como se os trens fossem trafegar na superfície. Pode? “Geisel nutria um ferrenho horror pelo filho do Coronel Arquiteto Francisco Marcelino de Souza Aguiar, projetista do Palácio Monroe. A raiva que Geisel sentia dele foi originada quando o filho de Souza Aguiar foi promovido no Exercito em detrimento de Geisel.” Ali, ele despejou a sua baba peçonhenta, por vingança, destruindo um monumento que integrava uma parte preciosa da História do Brasil. No Moroe, até então, era onde funcionava o Senado Federal. Contudo, o Rio continuou lindo, sendo, no meu modesto parecer, a cidade mais bonita do Mundo, emoldurada pelas suas montanhas do Pão-de-Açúcar, Corcovado, Pedra da Gávea, Tijuca, Pavãozinho, Rocinha e outras. No meu tempo, a Barra da Tijuca ainda era um sonho dos administradores, isso pelos idos dos anos 50. Para quem não sabe, “O nome – Monroe (dado ao prédio do Senado) foi uma homenagem ao Presidente americano James Monroe, por sugestão do Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores. Monroe foi o criador do Pan-Americanismo e, naquele local, realizou-se a "Terceira Conferência Pan-Americana".

Quando desci do ônibus, vindo de São Paulo, na Rodoviária, que ainda era a antiga, nas imediações da Praça Mauá, ninguém também me aguardava. E lá fui eu outra vez bater à porta do meu irmão, que estava ciente da minha chegada ao Rio naquela manhã de domingo de céu nublado, muito fria, que não esqueço. Mas, que não se dignou ir me receber no Terminal Rodoviário.

Apresentei-me, para reassumir, ainda como funcionário de Portaria, poucos dias depois, na Agência Central, à Rua 1º de Março, 66, onde, hoje, é o Centro Cultural do Banco do Brasil. Além dessa atividade, ali se encontram históricos da vida da instituição, à qual tenho muito orgulho de ter pertencido. E continuo a pertencer, embora aposentado, desde 1984. Ali, encontrei bom ambiente de trabalho.

(Antiga Ag, Central do BB, agora Centro Cultural)

Ao Banco, posso dizer, com orgulho, que me dediquei de corpo e alma, deixando de lado até o interesse de partir para outra profissão, prestando um vestibular qualquer, para qualquer outra carreira. Faltou-me estímulo. Não sei nem dizer por quê. O que estava me interessando, naquela altura da minha vida, era entrar para o quadro de Contabilidade, ser escriturário de carreira. Era o meu objetivo. E isso só veio acontecer em 1958, quando, só na cidade de São Paulo, o Banco fez um concurso (interno) para resolver a situação de muitos funcionários de Portaria, desejosos de mudarem de situação funcional. Conquistei, afinal, aquela minha pretensão.

Já no Rio, em agosto de 1954, o Brasil foi surpreendido com o suicídio de Getúlio Vargas. À frente do Palácio do Catete grande multidão compareceu, formando fila quilométrica para se despedir do líder populista, que disse: Só morto sairei do Catete. E realmente saiu.

(Jornal Última Hora)

Eu mesmo entrei na fila, só por curiosidade, pois, naqueles dias da minha vida, ainda não me despertava qualquer paixão por ideais políticos. Embora acompanhasse a campanha ferrenha do jornalista Carlos Lacerda, udenista (UDN), partido do Brigadeiro Eduardo Gomes, contra Getúlio Vargas, que estava envolvido num “mar de lama” nos porões do Palácio do Catete, como dizia o jornalista no seu combativo jornal Tribuna da Imprensa.

O Rio era ainda de muita paz, sem essa violência de agora. Os traficantes não eram os “donos” dos Morros, que eram habitados por gente simples, trabalhadora. Eu mesmo, nas minhas noites em Copacabana, quando os lotações (mini-ônibus) escasseavam em circulação depois da meia-noite, muitas vezes, pela a Av. Siqueira Campos, caminhava sozinho, entrando no Túnel Velho para sair em Botafogo, onde morava. E o Rio continua ainda mais lindo, mesmo com a insegurança por que, atualmente, o alegre e hospitaleiro povo carioca está vivendo.

O meu primeiro desempenho, como escriturário “Inicial”, foi numa agência do Banco na zona portuária, perto da Praça Mauá, na Rua do Livramento, no bairro da Gamboa. Pouco tempo por ali fiquei, transferido que fui para um departamento da Direção Geral, no Edifício Itaboraí, na Av. Getúlio Vargas, perto da Igreja da Candelária.

O bonde, que era o meu meio de transporte, como de 80% da população carioca, partindo da Zona Sul, dos bairros de Copacabana, Leblon, Ipanema, Botafogo e Laranjeiras, chegando até ao Largo da Carioca, no Terminal Tabuleiro da Baiana. Outros bondes também serviam a bairros da Zona Norte, como Tijuca, Meyer, Engenho de Dentro, Cascadura, Penha, Bonsucesso e outros. Havia os chamados “lotações”, com assentos limitados, não se viajando em pé, como nos ônibus que também circulavam para aqueles bairros e outros da Zona Norte, beneficiada também pelos trens da Central do Brasil. O metrô do Rio só começou a operar em março de 1979, na administração do governador Chagas Freitas.



(Bonde do Rio)

Os bondes saíram de circulação, substituídos que foram pelo transporte moderno do metrô. Por lembrança, restou apenas o bondinho de Santa Teresa, que faz o trajeto por sobre os Arcos da Lapa. “A estação dos bondes funciona diariamente, das 7:00h às 21:30h e fica na rua Lélio Gama, sem número (ao lado do prédio da Petrobras). A linha é de 1896, mas o terminal é bem mais recente, pois foi reconstruído à medida que a cidade foi crescendo. Infelizmente o terminal é uma construção moderna horrorosa que nada tem a ver com o bonde. Contrastando com a estrutura reta do local, a área de manobra dos veículos lembra mais um jardim. É dali que se toma o bondinho, rumo a Santa Teresa.”

(Bondinho Sta.Teresa)

O transporte aéreo, no Brasil, era privilégio da classe mais alta daquela época. As companhias de aviação que se destacavam, Cruzeiro do Sul, Panair do Brasil, atendiam àquela classe “A”, que assim já podíamos chamar. Aos mais modestos, em que me incluía, os vôos eram oferecidos pela Aerovias Brasil e Lloyd Aéreo. Lembro-me que, numa das minhas viagens a Alagoas, de férias, numa das aeronaves da “Aerovias”, deixando o Aeroporto Santos Dumont às 5h da manhã, a aterrissagem aconteceu às 5h da tarde no Aeroporto de Maceió. O trajeto do vôo tinha descida obrigatória em Vitória, Ilhéus, Itabuna, Jequié, Salvador, Aracaju e, finalmente, Maceió. Foi uma verdadeira maratona naquele sobe-e-desce. Pelo amor de Deus!...E foi a minha primeira viagem de avião, pois, quando deixei o Nordeste foi a bordo de um “ita”, como disse no início.

A televisão dava os seus primeiros passos, naquela minha época no Rio, bem como em São Paulo. Teve início em setembro de 1950, trazida por Assis Chateaubriand, que fundou o primeiro canal na TV Tupi. O Rádio e o Teatro dominavam o mundo do entretenimento. Na Praça Tiradentes, o Teatro Recreio lotava, nas apresentações do produtor Walter Pinto, com as suas revistas, em que se destacavam famosas vedetes, como Rose Rondeli, Mara Rúbia, Nélia Paula, Virgínia Lane e outras. No teatro, Procópio Ferreira, Bibi Ferreira (filha de Procópio), Paulo Gracindo e outros faziam sucesso na vida cultural (teatro é cultura) da cidade. O cinema brasileiro, com as suas chanchadas, agradava meio mundo de espectadores com suas comédias, trazendo em cena as figuras de Oscarito, Grande Otelo, Zeloni. Atlântida Cinematográfica, que era a nossa produtora de filmes, tinha em seu elenco artistas, entre outros, como Renata Fronzi, Anselmo Duarte, Catalano, José Lewgoy, Fada Santoro e Renato Restier. As salas de cinema, que eram boas salas, por sinal, instalavam-se em prédios no Centro do Rio e em alguns bairros. Na Cinelândia se não me engano, havia seis ou mais salas, denominando-se, por isso – Cinelândia.

(Cinelândia-Rio)

Muito aprendi no Rio de Janeiro, na “escola” da vida. Nos meus 24 anos de idade, enfrentando certos obstáculos que se me depararam, vivendo praticamente só na cidade grande, sem aquela vivência natural dos cariocas. Tomando, dia a dia, lições, adquirindo experiências, que, quando não temos alguém de lado para nos ajudar, facilmente absorvemos. Vivi quase “distante” do irmão que ali já vivia, introduzido no Banco que fui por ele, usando o prestígio de alguém, de algum colega seu da Direção Geral. Fiz as minhas amizades nos círculos de conhecimento que tive, tanto no trabalho como fora do Banco. Morei em “repúblicas” com dois ou três daqueles conhecidos. E levava a vida “na valsa”, sem preocupação financeira, porque o Banco, com o meu trabalho, garantia a minha sobrevivência. Na minha conta bancária, religiosamente, todo fim de mês, os meus vencimentos eram creditados. Aprendi, também, a controlar os meus gastos pessoais. Nunca ultrapassava o meu limite, nem mesmo aproveitando as noites das sextas-feiras e sábados da vida alegre do Rio, principalmente de Copacabana, o bairro mais badalado, desde aquele tempo.

E eu já vivendo no Rio, era ainda um ‘turista’. Aos poucos, fui descobrindo as maravilhas, as belezas da terra carioca. Até mesmo, por incrível que pareça, o baixo meretrício. “Na Lapa, na rua Conde Lage e adjacências, localizavam-se os bordéis elegantes da cidade - os prostíbulos ordinários ficavam na "Zona do Mangue", próximo da Praça 11, onde surgiu o samba. ("Zona" passou a significar local de prostituição. Quando se queria dizer que uma mulher se prostituíra dizia-se que ela "caiu na zona" ou era "uma mulher da zona." Só não recebi a faixa de cidadão-honorário, porque era “um-joão-ninguém”, perdido na multidão, mas, eu amava, como ainda amo, a terra carioca. Entre outras maravilhas do Rio, para mim, foi que ali casei e nasceram ali, em Botafogo, as minhas duas filhas Márcia (em 1959) e Kátia (em 1961). Tenho orgulho disso.

(Zona do Mangue)

Vê-se, acima, pequena mostra de uma das ruas da Zona do Mangue, em início de noite, com ainda reduzido número de “profissionais” do sexo, e de visitantes. A AIDS não era ainda o ‘bicho-papão’ na década de 50, época em que vivi no Rio. Conforme registros, o primeiro caso aconteceu, no Brasil, em 1982. Mas, outras infecções eram passíveis de contágio, como a sífilis e outras doenças venéreas. A prevenção, para quem se cuidava, era, como é até hoje, a ‘camisinha’. O “negócio” de meninas-de-programas, e, agora, também garotos-de-programa, ainda não estava “oficializado”, com agentes, estabelecidos, com telefones etc, para esse comércio da prostituição. Os anúncios, em alguns jornais, oferecendo mulheres para sexo, começaram a aparecer depois que as chamadas casas de tolerância entraram em decadência, com as desapropriações de sobrados antigos, onde, geralmente, funcionavam os prostíbulos, dando lugar a prédios modernos.

O Carnaval do Rio, naquela década, não tinha ainda esse deslumbramento de hoje, exibido na Marquês de Sapucaí. Era modesto. Posso dizer, porque presenciei alguns desfiles. As Escolas, sem grandes ornamentações, davam início aos desfiles na Av. Getúlio Vargas, na antiga Praça 11, entrando na Av. Rio Branco, findando, em apoteoses, na Cinelândia. Não me recordo se havia arquibancadas, cobrando-se ingresso para assistir aos desfiles do reinado de Momo. Nos blocos de rua o povo brincava de verdade, como se vê, abaixo, e não se limitava, como hoje, a ver o exagero das Escolas, com milhares de figurantes, inclusive com mulheres quase nuas, insinuantes, dentro de uma ‘arena’, que é o Sambódromo. E nas arquibancadas, aprisionada, a massa popular, em histeria, requebra e se agita, sem nenhum direito de participar da festa, que, de fato e de direito, é uma festa do povo. Industrializaram o Carnaval, que a poucos pertence.



E, falando em blocos de rua, não se pode deixar de lembrar o mais famoso bloco de rua – Cordão da Bola Preta - que dava o início aos dias de Carnaval do Rio.

Quem não chora, não mama / Segura meu bem, a chupeta

Lugar quente é na cama / Ou então, no Bola Preta.

Vem pro Bola, meu bem / Com alegria infernal

Todos são de coração / Todos são de coração

Foliões do Carnaval / Sensacional!"

(Nelson Barbosa / Vicente Paiva - 1962)



“Enquanto os versos famosos do hino do Cordão da Bola Preta não forem entoados, no centro do Rio de Janeiro, ao meio-dia do Sábado Gordo, precedidos das tradicionais clarinadas, o carnaval carioca não estará oficialmente aberto. O que acaba sendo mais uma ironia da mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, famosa por seu bom humor.” (De registros).

Hoje, o Carnaval virou uma indústria auferível, movimentando fábulas, em dinheiro, que não sei de onde vem, nem para onde vai. É um mistério, eu acho. O Sambódromo, outra grande obra de Oscar Niemeyer, é a fonte de dinheiro nos dias dos desfiles. E essa arrecadação será contabilizada pela Prefeitura do Rio, ou pelos presidentes das Escolas? Haverá distribuição de lucros? Algum resultado positivo, monetário, deve haver. E o “leão” da Fazenda? As Escolas, como as Igrejas, serão desobrigadas de Imposto de Renda? Como não sou economista, como muitos iguais a mim, alguém poderia nos esclarecer isso? Deixo no ar a questão...



(Samdódromo)







E o Rio continua lindo com Carnaval ou sem Carnaval, embora na luta cotidiana contra a violência, contra os traficantes, que instalaram um poder paralelo em determinadas Favelas, com armamentos, muitos, superiores aos utilizados pela Polícia. Com os últimos acontecimentos de incêndios de veículos em variados setores da cidade do Rio de Janeiro, comandados pelos chefes do tráfico de drogas, desafiando o Poder Público, o Governo do Estado, com o apoio total do Governo Federal, enfrentou o desafio dos bandidos, e foi à luta. Policiais militares e civis, com a cobertura das Forças Armadas, entraram no Complexo do Alemão, que era uma espécie de quartel-general, desalojando a bandidagem, e, ao que, tudo parece, trazendo paz à gente simples e ordeira que ali habita. E Copa de 2014 está aí. A segurança é um item primordial na agenda dos responsáveis pelo evento, que trará ao Brasil e, principalmente, ao Rio, multidões de estrangeiros, aficionadas pelo futebol. A repercussão, pelos jornais de todo o mundo, dessa guerra entre o Estado Brasileiro e os marginais do tráfego de entorpecentes, poderá enfraquecer o entusiasmo dos estrangeiros pela Copa no Brasil, desconfiados com a insegurança por que experimentariam em solo brasileiro. São três anos ainda até lá. É tempo suficiente para que o governador Sérgio Cabral garanta a realização das competições no Rio, dando certeza, garantindo aos cidadãos que a Paz reinará em todos os quadrantes da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tudo fazendo crer que já teve início agora,







sem mais cenas como esta, quando da invasão do Complexo do Alemão, em 28.11.2010, fotografadas por repórteres, inclusive, estrangeiros, levando ao Mundo o retrato do poderio do narcotráfico, que trouxe às ruas soldados e carros blindados do Exército Brasileiro. Arrancar pela raiz esse ‘cancro’ dos entorpecentes, da cocaína, principalmente, com os quilômetros de fronteira, que tem o Brasil com nove países, propiciando, ainda, o contrabando de armas poderosas e munições para reforçar o poder paralelo dos narcotraficantes, é uma tarefa difícil, mesmo com determinadas providências a cargo das Forças Armadas. Com essa nossa fronteira, o Brasil também tem sido um caminho fácil, um corredor aberto para a exportação da cocaína da Colômbia ou da Bolívia, camuflada de variadas maneiras, através de portadores “laranjas”, ou não, para aeroportos da Europa. E a verdade é que a “droga” já se difundiu também pelo mundo inteiro.

UM PRESENTE DE GREGO – Assim posso chamar. Em 1961, eu trabalhava no Departamento do Funcionalismo (FUNCI), que ficava no 6º andar (era o último) da Agência Central do Banco, na Rua 1º de Março (Nº 66). Já como funcionário da Contabilidade, aprovado em concurso interno. Era encarregado da movimentação dos funcionários de Portaria (contínuos e serventes). Um dia, procurou-me um funcionário (servente) de uma agência de São Paulo (Capital). Ele estava às vésperas de sua aposentadoria. E, assim, desejava ser transferido do quadro de “servente” para “contínuo”. Melhoraria, um pouco, a sua remuneração. Levei o caso ao meu Chefe (Dídimo Peixoto de Vasconcelos), que autorizou a reivindicação do solicitante, que era, por sinal, um senhor modesto e educado, aparentando uns 50 anos de idade. Dias depois, recebi um telefonema de São Paulo. Estranhei. Do outro lado da linha escutei a voz do “novo” contínuo, que me presenteava com um belo exemplar de cachorro, da raça bassê, que devia ser o animal de estimação da família. A “encomenda” foi despachada, de trem, de São Paulo. E que tive de ir receber na Central do Brasil. O pequeno animal me fez uma “festa” danada. Parecia que já me conhecia. Lamentavelmente, tive que me desfazer do “linguiça”. Eu morava, naquela ocasião, num apartamento de quarto-e-sala. A minha filha (Márcia), com três anos, apavorou-se com o animal correndo e pulando dentro de casa. E o “presente de grego” fui obrigado a passar para frente, cedendo a doação a uma vizinha do andar superior, que o aceitou com muito carinho.







(Rua do Ouvidor em 1957)



Na década de 60, a mulher brasileira começava a adotar a vestimenta que era exclusividade do homem – a calça comprida. Antes, cumpria o que apregoavam as religiões: “A mulher não usará roupa de homem, nem o homem veste peculiar à mulher; porque qualquer que faz tais coisas é abominável ao Senhor, teu Deus.” As rodadas saias-compridas, aos poucos, foram substituídas pelas, agora, estilizadas calças jeans, já aceitas até nos locais de trabalho de funcionárias públicas, comerciárias, bancárias etc. Nas praias, os maiôs das banhistas, em Copacabana, Ipanema e Leblon, eram discretos. Os tipos biquínis, “fio-dental” e “asa-delta” entraram para valer na vida das cariocas nos anos 80. Nos anos 70, as frequentadoras das areias de Copacabana já mostravam seus corpos com maiô duas-peças.









Largo da Carioca – década de 50)

Naquela época (década de 50), no Banco, tínhamos dois clubes recreativos, a AABB e o Satélite, este freqüentado pelo pessoal de Portaria. Havia, a meu ver, uma certa discriminação, separando, assim, as duas classes: escriturários e contínuos. Anos depois, aquele sentimento preconceituoso foi desaparecendo. E alguma determinação, não sei se partida da Presidência do Banco, acabou com o “orgulho” dos associados, os escriturários da Contabilidade. Hoje em dia, o Clube é um só, acolhendo, para todas as suas atividades, todos os funcionários, sem distinção. Naqueles dias, já bem distantes, mesmo como contínuo, por convite ou amizade, frequentava os bailes da AABB, que ficava na Tijuca. No Carnaval de 1958, conheci Ezetilde. E, em 10.01.1959, casamos. Foi um solenidade modesta, na residência de um primo de Ezetilde (Aníbal), no Estácio, ministrada por um pastor presbiteriano.

(10-01-1959)





Tivemos um modesto começo de vida, morando num apartamento de quarto-e-sala. A vida a dois, mesmo não sendo um mar-de-rosas, tivemos os nossos bons momentos de felicidades. Houve, como ainda há, “as pedras” no nosso caminho, os altos e baixos que acontecem até às “melhores famílias”. E, aos trancos e barrancos, “entre tapas e beijos”, como fala uma certa música popular, vamos levando o “barco”, evitando naufragar no revolto “oceano“ da vida, que já nos trouxe até hoje a esse “porto” de 2012.

RECORDANDO. No intervalo de namoro, de 58 a 59, aprovei-me, em concurso interno do Banco, galgando, então, a carreira de Contabilidade, não pertencendo mais, assim, ao Quadro de Portaria do Banco, em que até, então, fazia parte do contingente dos funcionários chamados “contínuos”. Havia também, daquele Quadro, os “serventes”, encarregados dos serviços de limpezas. Foi quando voltei a São Paulo, pela segunda vez, juntamente com outro colega que experimentava a mesma situação que eu, pois, de “contínuos” queríamos passar para “escriturários”. Fomos e vencemos. Dali para diante, não tive mais contato com aquele colega, que, como seu desejo, aprovado que fosse, queria voltar para sua terra-natal, Corumbá ou Cuiabá (MT). Como Escriturário-Inicial, fui designado para trabalhar na agência da Gamboa, que ficava perto do Cais do Porto. Se não me engano, era a Metropolitana Livramento. Passei pouco tempo ali. Logo, fui transferido para a Direção Geral, para o Departamento do Patrimônio Imobiliário (DEPIM). Com a mudança da chefia daquele setor, dispensado do Gabinete, como outros colegas, apresentei-me no Departamento do Funcionalismo (FUNCI), para ser lotado em qualquer outro local. Felizmente, não sei por quê, fiquei ali mesmo no FUNCI.

TRANSFERÊNCIA PARA BRASÍLIA – Este, posso dizer, foi o terceiro capítulo da minha trajetória, depois que “peguei um “ita” no Nor...deste” e fui para o Sul (São Paulo e Rio de Janeiro). Juscelino Kubitschek, mais do que Pedro Álvares Cabral, tinha descoberto o Brasil, construindo a nova Capital do Brasil – Brasília. A euforia explodia de norte a sul. O Planalto Central era a Meca brasileira. Todos, ou quase todos, olhavam só naquela direção. As oportunidades eram alvissareiras até para colegas que desejassem para lá se transferir. O Banco oferecia vantagens financeiras, entre outras, como, tão logo, residir em imóveis construídos para os seus funcionários. De início, não tive qualquer entusiasmo de sair do Rio, a Cidade Maravilhosa, para me aventurar pelo “eldorado” brasileiro, “inventado” por JK no longínquo interior do Planalto Central. “...em 1955 foi delimitada uma área de 50 mil quilômetro quadrados – onde localiza-se o atual Distrito Federal. A construção da nova capital teve início em abril de 1956, no comando do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, com a criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (NOVACAP) e o projeto de lei 2.874, o governo lançou o edital do Concurso Público para a construção do Plano Piloto.”

"Deste Planalto Central, desta solidão em que breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com uma fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". Juscelino Kubistchek "

Em 1959, já casado, residindo num apartamento de quarto-e-sala, na Rua

Aristides Lobo, no Rio Comprido, vi que o nosso espaço estava reduzido, com as duas filhas, Márcia e Kátia, dormindo no mesmo (único) quarto. A nossa situação financeira apertou. Ezetilde não trabalhava. Pensamos em mudar de apartamento, que, com dois quartos atendia às nossas necessidades. Pesquisamos. Mas, as nossas possibilidades estavam bem aquém dos preços dos aluguéis de imóveis no mercado. Então, só vi uma saída, que era transferir-me para o novo Distrito Federal. Com informações de um colega, alagoano, por sinal, Wilmar Jatobá, que havia se transferido de Garanhuns (PE) para Brasília, não tinha outra saída senão conseguir, também, meu deslocamento para o DF de JK. Aí, como se diz, “o bicho pegou”. As transferências foram “trancadas”. Os pedidos, do Brasil inteiro, ultrapassaram a expectativa da Direção Geral do Banco. Já bastava o número de funcionários para ali deslocados. E agora? O quê fazer? Não pensei duas vezes e fui “chorar” a minha desilusão com o Chefe do Funci (Dídimo Peixoto de Vasconcelos), que, não sei como, confesso, convenceu alguém na Presidência, e a minha transferência foi autorizada. Isso aconteceu em 1962. Recebi do Banco ajuda de custo, incluindo até passagens de avião. E, só, parti para Brasília. A família seguiu depois, enquanto, em Brasília, eu aguardava as chaves do meu novo apartamento, no bloco ‘I”, da SQS 308. Nesse intervalo, como outros colegas, fiquei hospedado nos alojamentos que o Banco mantinha na SQS 303, onde, depois, nasceram ali outros blocos de apartamento. Hoje, desde 1999, vivo, melhor, vivemos nessa quadra. Não sei por quê, chamavam aquele alojamento de Lâminas. As refeições, muito boas, eram servidas num restaurante que ficava numa parte da Agência Central, em término de construção. Voei para o novo DF numa aeronave da desaparecida “Cruzeiro do Sul”, que atendia muito bem, nos seus vôos domésticos, com primoroso serviço de bordo, servido por comissárias bonitas, trajando, elegantemente, o uniforme da Companhia. A minha intenção, o meu pensamento era passar uma temporada, um ano ou dois, no máximo, tempo suficiente, acreditava, para fazer um “pé-de-meia”, uma boa economia, e voltar para o Rio, onde compraria um apartamento e lá me fixaria definitivamente. Gosto do litoral. Não sou pescador, mas admiro o mar. Como não somos donos de nosso destino, que a Deus pertence, o meu projeto para aquele “futuro” que almejava, foi de águas abaixo. O tempo foi passando e eu fui ficando, ficando, somando um ano atrás do outro.





(Este foi o meu primeiro carro, um “fusca” ano 1961, de segunda mão).



NA METROPOLITANA ASA SUL, assumi. Essa agência, por sorte, estava instalada na quadra 507, da Av. W-3. E o nosso apartamento ficava na SQS 308, de onde eu ia, a pé, para o trabalho. Ali, trabalhei até essa metropolitana ter o seu quadro de funcionários reduzido, transferidos alguns para a Agência Central, para onde eu fui também. Na Central, trabalhei por um bom período. Quando consegui uma “comissão”, depois de um longo período na “geladeira”, isto é, sem cargo comissionado, fui designado para chefiar subagências. Os colegas do “aquário” do Gerente – Nazareno Paranhos – eram beneficiados. Eu, como “peixe fora d´água”, penei um bocado na “vala comum”, como se dizia. Comissionado, então, “gerenciei” algumas daquelas extensões da Central, como no Tribunal de Contas da União, na Presidência da República, onde fiquei por dois períodos, no SNI (Serviço Nacional de Informações) e no DNER, onde me aposentei, em 09 de janeiro de 1984. Naquele período, o Banco negociou a venda dos apartamentos para nós, funcionários, ocupantes. Como proprietário, então, do imóvel, resolvi mudar de morada, trocando o apartamento por uma casa no Lago Sul, onde moramos até 1999. Dali, negociando a casa, na QI-9, viemos para o Plano Piloto, para a SQS 303. E aqui, no bloco ‘G’, abaixo, estamos há 12 anos. A próxima morada? Só Deus sabe...

(Bloco “G” da SQS 303)

E, de 1962 cheguei a 2011 vivendo em Brasília. Finquei, querendo ou não, as minhas raízes no Planalto Central. O início não foi fácil, com relação ao clima do Planalto, geralmente seco, devido à altitude de um pouco acima de mil metros. A vegetação, tipo cerrado, quase ou nenhuma umidade oferecia. O frio seco dos meses de agosto e setembro incomodava, em alguns, provocando tosse e até sangramento nasal, além de secar os lábios, que tínhamos de protegê-los com pomada de cacau. Recomendavam que, à noite, na hora de dormir, puséssemos, no quarto, vasilhames com água. Outro fator detestável era a poeira vermelha, natural do solo da região, talvez com elevado teor de ferro. Devido ao solo trabalhado pelas construções que se sucediam dia após dia, a poeira se levantava em redemoinhos, feitos pequenos ciclones, penetrando até nos cômodos, se abertos, dos apartamentos. Mas tudo melhorou, anos depois, com o plantio que fizeram os prefeitos, nomeados para governar a cidade, de gramados e árvores nas quadras residenciais. E, em Brasília, fui me acomodando, e a família também. As filhas (Márcia e Kátia) em franco aprendizado no Jardim de Infância da própria quadra em que vivíamos. Depois, em colégio particular de freiras, que, naquele início, já se estabeleciam no novo Distrito Federal. Minha esposa (Ezetilde), como enfermeira (Ana Neri), logo fez concurso para a Fundação Hospitalar do Distrito Federal. E, por felicidade, foi nomeada, pouco tempo depois, para chefiar um Posto de Saúde nas entre quadras 308/309, a um passo do nosso bloco residencial. Em Brasília, nasceram os netos Amanda e Paulo Guilherme, filhos de Márcia, e Marcel, filho de Kátia.

O clima da atmosfera pesada do regime militar dominava o País. “Podemos definir a Ditadura Militar como sendo o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Esta época vai de 1964 a 1985. Caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.” Só em 1985, respiramos aliviados, depois de 21 anos, em que a bota pesada dos militares tirou o pé das nossas cabeças. Só para registrar, os ditadores militares foram os generais Castello Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Medici (1969-1974 e João Baptista Figueiredo (1979-1985). Naquele período, muitos brasileiros, que combatiam o regime de exceção, uns foram presos e torturados, outros “desapareceram”, e alguns se exilaram em embaixadas estrangeiras, partindo dali para o exílio em países em que prevalecia a democracia. Não obstante os percalços, as humilhações por que também passou o criador de Brasília, prevaleceram os ideais do grande democrata que foi JUSCELINO KUBISTCHEK DE OLIVEIRA. E Brasília se consolidou como a Capital de todos os brasileiros. Aquele sim, foi o “cara”

(A ele, a minha homenagem)

Devo, posso dizer, o que amealhei, juntamente com Ezetilde, a este brasileiro, que, de uma forma ou de outra, estimulou-me a deixar o Rio de Janeiro, em 1962, para viver em Brasília, quando ainda a poeira vermelha da terra virada e revirada, para a construção da Nova Capital, fazia redemoinhos no céu do Planalto Central, em certas pancadas de vento. Vim no intuito de fazer o chamado pé-de-meia e voltar para a Cidade Maravilhosa. E a mais bonita do mundo. Mas, fui ficando, ficando e... fiquei. O Banco, entre outras vantagens, deu-me a oportunidade de morar bem, como a outros colegas, num apartamento (recém-construído naquele ano de 1962), de cento e poucos metros quadrados. Anos depois, tornei-me proprietário do imóvel, como aconteceu também com outros colegas, que vieram em busca da realização do sonho de JK. Aposentei-me em 1983. Trabalhei, além da Agência Centro (a Central ainda era no Rio), em subagências, que funcionam em repartições públicas. Chefiei a do Tribunal de Contas da União, do Palácio do Planalto (governo Médici e João Figueiredo), da ESNI e do DNER, onde me aposentei. Nesse tempo já residia no Lago Sul, na Q.I. 9, do Conjunto 7, Casa 12, onde, com a esposa e filhas, desfrutei de bons momentos, despertando-me até a vontade de pintar quadros a óleo, sem qualquer pretensão de concorrer com Michelangelo, Leonardo da Vinci, Picasso, Rembrant, nem com o nosso conceituado Candido Portinari. Abaixo, as provas do meu “talento”, que deixo para a posteridade, para a esposa, filhas e netos lembrarem de mim, se primeiro me for para outra dimensão, que, talvez, exista. A certeza disto, de um lugar verdadeiramente de paz, amor, fraternidade e tudo mais que seja melhor do que nesta vida material, de carne e osso, ainda tenho as minhas dúvidas. Perdoem-me os crentes, digo, os religiosos de todos os credos.





Deixando de lado as pinturas, enveredei-me pelos caminhos da informática, depois de ter tido como distração o rádio PX, com que me comunicava com alguns afeiçoados de outros países.

A Internet deu os seus primeiros passos no Brasil em 1988. Como milhões e milhares de pessoas pelo mundo, a Internet também me fascinou. Aprendi, sem qualquer ensinamento, ou curso, para este fim, aprendi a lidar com o computador, que, entre novidades que eu desconhecia, em muito me facilitou a escrever, bem melhor do que nas ultrapassadas máquinas de escrever Remington, principalmente trabalhos literários, poesias, contos e crônicas, uns até publicados em sites, desta natureza, na Internet, como este meu soneto abaixo, ilustrado por mim, editado no Recanto das Letras, que é um importante site de literatura da Internet.



NÓS



Nós, que outrora, vivemos tão felizes,

Compartilhando o mesmo amor tão puro.

E hoje aceitando, em vez de luz, o escuro

Das nossas diferenças e deslizes.



Mas, mesmo assim, eu te confesso. Eu juro.

E mesmo que mais nada valorizes,

Julgando-nos, então, dois infelizes,

Eu não perdi a crença de um futuro,



Em que, talvez, aquele amor da gente,

Que a minha alma, abatida, ainda sente,

Torne a acender a chama... a crepitar.



Aquele nosso amor, de ontem, tão forte,

Está doente, agora, quase à morte,

Necessitando se ressuscitar!



Nos meus 80 anos, completados em 15 de agosto de 2011, fiz este outro soneto, editado abaixo. Cheguei ao ponto em que a estrada já não é mais aquela reta que se perde no horizonte. Daqui para diante o “asfalto” vai se desgastando. Contudo, ainda vou caminhando sob o peso dos meus



OITENTA ANOS



Agora, só me restam poucos passos

Em minha vida. E nesta caminhada,

Quase chegando ao ponto de parada,

P ´ra repensar vitórias e fracassos.



Vitórias? Tive algumas nesta estrada,

Sem vivas, sem aplausos, nem abraços.

E, hoje, já vejo os derradeiros traços

Do que resta de mim, que é quase nada...



Anos são tantos, bem ou mal vividos,

De desejos e planos, uns perdidos;

Outros tantos, em pouco, alcançados...



E nos meus oitenta anos, penso, agora,

Que não esteja distante a infausta hora

De remir - face à morte - os meus pecados!



Paulo de Góes Andrade



































































































































































PEGUEI UM “ita” NO NOR...DESTE



Aos poucos Maceió ia se distanciando, perdendo-se no horizonte, enquanto o navio entrava em mar aberto no rumo do Sul. O destino era o Rio de Janeiro. A bordo estava eu, “marinheiro de primeira viagem”. Ali, num dos “itas” da Cia. Nacional de Navegação Costeira, que competia, naquele tempo, com a Cia. de Navegação Lloyd Brasileiro, na costa brasileira, de Manaus a Porto Alegre. E até mesmo para a América do Norte. Se não me falha a memória, era o Itapagé ou o Itanagé, da Costeira, como era chamada, em que eu viajava. No cais, na minha despedida, ficaram meu primo-irmão Francisquinho (o “imortal” Francisco Valois, da Academia Alagoana de Letras) e o nosso tio José de Góis, que, à época, trabalhava num banco particular, em Maceió. Não esqueci, até hoje, os olhos marejados do amigo primo, que foi filho único, considerando-me, assim, um irmão. Não teve a infância com seus pais, que faleceram muito antes da sua adolescência. Ficou sob os cuidados da nossa avó e do nosso tio, que o criaram com muito rigor, castrando-lhe a liberdade que eu e outros meninos tivemos na nossa pré-adolescência, convivendo com os nossos pais, mais liberais em algumas atitudes. Considerava-me, pois, um irmão, eu, que o arrastava para certas “aventuras” concernentes à nossa idade.



(Maceió à distância)

Era final do mês de junho de 1953. Não me recordo o dia exato em que embarquei, com o coração pesado de lembranças e saudades, mas com a vontade única, ansioso mesmo de ter um emprego, livrando-me, assim, da dependência financeira dos meus pais. Infelizmente não tinha sido aprovado no vestibular para medicina no Recife, na Universidade Federal de Pernambuco. A minha mãe, no que lhe era possível, dava-me algum dinheiro para eu não ficar de bolso “furado”. O meu pai, por sua vez, era indiferente a que eu, e os irmãos necessitassem com relação a dinheiro. Era, posso dizer, meio “usura”. Providências, como esta e outras, eram tomadas por dona Alfredina, minha inesquecível mãe.

Então, talvez por sugestão dela, o irmão Afrânio, que já trabalhava havia mais tempo na Direção Geral do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, conseguiu, não sei com quem, a minha nomeação para o quadro de Portaria, para servir em São Paulo. Assim, não era uma aventura a que eu iria me submeter. Não ia eu à procura de um meio de vida ali, tão distante, como já fizeram tantos nordestinos necessitados, porque já levava na bagagem um documento que me credenciava, me dava o direito de assumir uma ocupação no Banco do Brasil. Naquele ano, em 20 de março, falecia Graciliano Ramos, escritor alagoano, autor de Memórias do Cárcere e outras obras consagradas. Nascia, no dia 03 daquele mesmo mês, o “galinho de Quintino”, o nosso Zico, ou melhor, Arthur Antunes Coimbra, um dos melhores jogadores brasileiros, atuando no Flamengo, esse time que tem a maior torcida do Brasil. Outros fatos aconteceram, que junto aos que experimentei comigo mesmo. No dia 15 de agosto daquele ano, completaria eu 22 anos, pois sou de 1931. Hoje, nos meus 79 anos, admiro a minha coragem e disposição de ter enfrentado aquele meu início de trabalho num “mundo” completamente estranho, que era São Paulo para mim, vindo da distante Alagoas, sem qualquer experiência de vida e de trabalho. Mas Deus me concedeu força e coragem. Fui, vi e venci, quase imitando o romano Julio César que disse: veni, vidi, vici (vim, vi e venci).

O vapor Itapagé, ou Itanagé, singrava lentamente as águas azuis do nosso oceano Atlântico, umas vezes sereno, sem qualquer oscilação, outras vezes obedecendo ao balançar do mar, quando os ventos marinhos açoitavam as águas, deixando-me enjoado, como se estivesse saído de uma rodada de mistura de bebidas alcoólicas, vendo o mundo girar ao meu redor, sacudindo o meu estômago quase vazio, já que havia rejeitado de pronto as iguarias, não muito convidativas, que ofereciam na sala de refeições para o jantar. Ali se iniciou o meu sofrimento, acrescido da saudade dos entes queridos que se perderam no horizonte da minha imaginação. A tristeza da minha mãe, seus olhos cheios de lágrimas era um filme constante rodado na tela do meu pensamento, quando a abracei, deixando o lar em que vivia até então, lá no interior do meu Estado.

A bordo, não tive ideia do tempo decorrido de Maceió a Salvador. Estava, como se diz, fora de órbita. Devia ter sido um dia, dois. Não sei bem. Ali estava eu, prostrado, quase em coma, numa espreguiçadeira, no convés, onde passei a noite. Estava, na verdade, sem noção do tempo. Não tive condições físicas, na primeira noite, de entrar no camarote. Das vigias (janelas), vendo o mar oscilando para a direita e para a esquerda, sem dúvida, o meu tormento haveria de aumentar, preferindo, pois, permanecer no convés, donde ainda dava para vislumbrar a grandeza do firmamento ainda claro e a chegada, em seguida, da noite salpicada de estrelas, inúmeras cintilantes como diamantes. O cheiro constante de tinta a óleo, para conservação de peças de ferro que compunham boa parte do navio, para evitar a corrosão da maresia, contribuía para o meu estado. Hoje, bem diferente daquela época dos anos 50, os transatlânticos devem ser construídos de materiais, inoxidáveis, sem aquela necessidade premente, obrigatória mesmo, de pintar, semanalmente talvez, as esquadrias, corrimãos, degraus etc, que compunham partes dos navios de passageiros e navios mercantes.



O “ita”, em que eu viajava, um dia e meio depois, atracou no Cais do Porto de Salvador. A Bahia já era famosa, mesmo sem se falar que foi a cidade-mãe do Brasil, quando ali desembarcaram, sob o comando do português Pedro Álvares Cabral, os nossos primeiros colonizadores. Estava eu na Bahia de Rui Barbosa, de Castro Alves. A terra de Jorge Amado, autor de Capitães de Areia, de Dona Flor e Seus Dois Maridos e outros romances. Dorival Caymmi já tinha fama, não só por ser o berço também do grande compositor e cantor, que em 1953 (ano que parti para o Sul) tinha 39 anos de idade. Estávamos em Salvador das baianas do Pelourinho, com suas roupas características, de turbantes e saias rodadas com estampas coloridas, por trás dos seus tabuleiros vistosos de vatapás e acarajés. O Elevador Lacerda já era ponto turístico para aqueles, ainda poucos, que visitavam Salvador. Alguns passageiros embarcaram ali, destinados, por certo, ao Rio de Janeiro. Não sei quanto tempo o nosso navio ficou ali atracado. Eu ainda estava fora de órbita, como disse, vendo o mundo girar, entregue ao enjoo que me consumia. Mas alguém, lembro-me que era uma mulher, dos embarcados, viu o meu estado deplorável, deitado como estava numa espreguiçadeira, sem qualquer ânimo, e me ofereu um comprimido, que só tempos depois tomei conhecimento do nome do medicamento, que era “Dramin”. Um “santo” remédio. Dali, até atracar o navio no porto do Rio de Janeiro, mesmo se acontecessem oscilações no mar dos Abrolhos, segundo diziam, aconteceriam, nada mais senti. O mar, felizmente, esteve sereno naquela região.



O dia estava clareando quando entramos na bela Baía da Guanabara. Conferi o meu relógio. Passava das 6 horas da manhã. O céu da Cidade Maravilhosa estava mesclado de dourado, pintado pelos primeiros raios do sol. O navio aproximava-se do Cais do Porto e da vigia do meu camarote vi, pela primeira vez, parte da beleza do Rio, tendo ao fundo um edifício de vários andares, que depois vim saber que se tratava do Edifício “A Noite” (“...construído em fins dos anos 20, com a nova tecnologia do concreto armado, é considerado o introdutor da arquitetura em estilo artdecó no Brasil. Foi o primeiro arranha céu da cidade e em seu projeto foi usado além do calculo estrutural, a ação dos ventos sobre a estrutura. Em seu lugar havia o casarão do Liceu Literário Português, transferido para o Largo da Carioca...”). No prédio, depois vim tomar conhecimento, entre outras atividades, estava instalada a famosa Radio Nacional, que se escutava, com prioridade, em todo território brasileiro face aos seus excelentes noticiários, bem como os programas artísticos, destacando-se o Programa César de Alencar, o de Calouros de Ari Barroso e de Jararaca e Ratinho, que muito nos divertiam com as suas irreverências, incluindo críticas com “certos” políticos da época. Atracado o Itapagé (ou Itaberá), os passageiros estavam liberados para o desembarque. E lá fui eu também em meio aos demais descendo a escada de acesso à terra firme do Cais da Praça Mauá. Senti-me “um estranho no ninho”, diante da cidade grande, num mundo diferente para mim, longe, pois, do meu Estado natal, dos meus familiares, da bem mais tranqüila Maceió, que ficou bem longe. Era hora de respirar fundo e enfrentar a região sudeste do Brasil, mesmo sem experiência, nos meus 22 anos de idade, quanto ao modus vivendi da gente carioca e, dois dias depois, do povo de São Paulo (Capital), para onde segui para trabalhar no Banco do Brasil. No Cais, motoristas de táxis disputavam os desembarcados, se oferecendo para uns e para outros (incluindo-me) para nos levar aos nossos destinos no Rio. Afinal, com três companheiros de viagem, ficou ajustado determinado preço, que não lembro o valor em cruzeiros (moeda da época), com um taxista, para o nosso itinerário. Fiz, assim, um ligeiro passeio turístico pela cidade. Algumas paisagens do Rio me encantaram. O meu destino, sendo eu o último, foi o bairro de Botafogo, onde residia um irmão, que se justificou por não ter ido à minha chegada porque “se confundiu” com a hora que o navio chegaria. Engoli a seco sua “justificativa”. O tempo, naquele mês de julho, estava frio e, com a umidade, muito me incomodava. Devia está na casa dos 23° graus, o que nunca experimentei em Alagoas. Mas, coisa bem pior provei em São Paulo, quando ali desembarquei dois dias depois que deixei o Rio de Janeiro. Na Rodoviária, na Capital dos paulistas, amarguei a mesma decepção. Um conhecido, que já trabalhava no Banco do Brasil, por sinal, vindo também de Alagoas, já vivendo ali por algum tempo, não me esperava, como prometido em correspondência que trocamos. Depois de percorridos os 400 quilômetros, que ligam o Rio a São Paulo, na famosa Via Dutra, o ônibus chegou à Rodoviária, encostando na parada determinada para os veículos interestaduais. O frio, em São Paulo, nos seus quase 800 metros de altitude, incomodava-me sobremaneira. Devia andar pela casa dos 18 graus, que para mim, vindo do Nordeste, era um castigo. Os passageiros se dispersaram entre muitas outras pessoas, em busca, assim, dos seus destinos, apanhando táxis ou até mesmo pegando alguns ônibus que, com muita eficiência, circulavam para vários pontos da cidade. O meu destino foi o bairro do Jabaquara, na Avenida do mesmo nome, onde se situava a agência do Banco do Brasil em que eu tomaria posse, numa quarta-feira, naquele distante 8 de julho de 1953. O taxista ajudou-me a procurar uma hospedaria. Nem nome de algum hotel ou pousada trazia comigo. Confiei no amigo, que, infelizmente, falhou. Afinal, depois de pelo menos 30 a 40 minutos rodando de táxi, pelas ruas do bairro, dei com o nome de uma “pensão”, “hospedaria”, sei lá o quê. Já era fim de tarde. O frio era intenso. Paguei a corrida de táxi. E me vi, naquele instante, só. Eu e Deus a enfrentar o desconhecido da grande cidade. Entrei na modesta hospedaria, identificando-me à pessoa que me atendeu num simples balcão da sala de espera e pedi um quarto, que tive de dividir com um dois indivíduos, que ali já eram hóspedes.

Hoje, relembrando aqueles momentos por que passei, chegando sozinho em São Paulo, vindo de Alagoas, nos meus inexperientes 22 anos de idade, considero-me um “herói de batalhas quase vencidas”, porque, dali para diante, muita luta tinha ainda para enfrentar.



(O bonde em S. Paulo)

A primeira noite, na modesta pensão, ou hospedaria, dormi com a própria roupa com que viajei do Rio para São Paulo, confeccionada em casimira, que é um tecido leve de lã, azul-escuro, não me desfazendo nem do paletó, tipo jaquetão. A friagem era de doer na alma. O cobertor foi insuficiente para me aquecer. O pouco dinheiro, parte do adiantamento que o Banco, em Maceió, me fez, que eu trazia, acomodei-o no bolso interno do jaquetão, sem qualquer possibilidade de perdê-lo, nem ser roubado. No quarto, dormiam mais dois hóspedes, se não estou enganado. Na manhã seguinte, depois de um razoável café-da-manhã, tomado de uma disposição que Deus me deu, fui à luta em busca de um lugar melhor para me hospedar. Aí já era uma casa até vistosa, protegida por uma mureta na frente, onde um pequeno portão dava acesso a três lances de degraus que levavam à porta principal, ladeada por duas janelas grandes. A fachada era de um verde-claro ainda conservado, no estilo antigo-moderno, se assim pude considerar. E, melhor, localizada na Avenida Jabaquara, onde, um pouco adiante, não chegando a um quilômetro, estava a agência do Banco. Como a hospedagem anterior, não havia quartos individuais. Então, tive, como companheiro, um cidadão modesto, mas simpático, de pouca conversa. Do meu jeito. Não era nordestino, pelo seu jeito de falar. Como carregava no “r” (interiôrr...), julguei-o paranaense ou mesmo de qualquer cidade do interior de São Paulo. Não me lembro mais do seu nome. Às 5 da matina, já estava de pé. Era padeiro, como me disse. Saía, assim, àquela hora para o batente, não sei aonde. E eu, como a luz que acendia, despertava. E o que mais de incomodava não era tanto a luz que iluminava todo o quarto, mas o mau cheiro que exalava dos pés do companheiro, dono de um chulé de “matar gambá”, calçando os seus sapatos, se trocando, enfim, para ir embora. Ali, naquela hospedaria, felizmente, devo ter ficado por uma semana, no máximo.

Apresentei-me no dia 8 de julho de 1953, uma quarta-feira, à administração da agência do Banco do Brasil, que, àquela época, denominava-se Metropolitana Bosque da Saúde, em vista da sua aproximação ao bairro do mesmo nome. Na verdade, o prédio situava-se na Avenida Jabaquara. Não me lembro o número. E, entrosando-me, então, com alguns colegas, conhecedores do bairro, mudei-me para outro lugar, alojando-me mais próximo do Banco, passando a dividir um quarto com um companheiro de trabalho, num apartamento, de uma senhora viúva, que ficava no andar superior de um prédio comercial, que tínhamos acesso pelos poucos degraus de uma escada, de uma porta ao lado, para subir. Ali ficava também o “comércio” do Fuad, um tipo branquelo, muito simpático, descendente, o que me pareceu, de libanês ou turco. Era um pequeno armazém, uma espécie de casa de conveniência, onde se encontrava quase de tudo um pouco. Geralmente, nosso desjejum, meu e do colega, era feito ali, na bodega do Fuad. O almoço, com outros colegas, era na residência de uma família, nas imediações. Era uma comida caseira, mas muito bem preparada pela própria dona da casa.



(Viaduto do Chá. Ano 50)

O Banco ainda adotava o velho estilo de administradores de agências, formado por um gerente e um contador que as figuras máximas que mandavam no “padaço”, quero dizer na agência. O gerente isolava-se em uma sala, fora do recinto da Contabilidade, onde trabalhava o funcionalismo, comandado pelo Contador. Um longo balcão, onde ficava um guichê de caixa, separava a clientela dos funcionários. Geralmente, era assim em todas as demais unidades, pelo Brasil afora, naquela época. Cabia ao Contador, entre outras tarefas que lhe competiam, receber os novos funcionários. Então, postei-me, como um recruta, em frente a um cidadão que tinha a cara mais de um boxeador, de um sargentão, de cara-amarrada, do que de um executivo, embora bem vestido, com camisa de mangas curtas, mostrando os braços musculosos e “enforcado” numa gravata, que era o sr. Paulo Bastos, entregando-lhe a minha carta de apresentação, recebida na agência do BB em Maceió. Dali para diante era só cumprir as determinações que me foram atribuídas, passando a respeitar, à risca, a “batuta” daquele “maestro,” que administrava com mão-de-ferro. Qualquer deslize, por mais simples que fosse praticado, não só por mim, mas por qualquer outro funcionário, mesmo superior ao cargo que eu exercia de servidor de Portaria, era advertido pelo sr. Paulo Bastos. O Gerente, sr. Orlando Baldi, mais parecendo o “proprietário” do Banco, pela imponência de sua maneira de ser, envergando, costumeiramente, seus trajes elegantes (calça, paletó, camisa e gravata), fechava-se na sua sala, bem decorada, por sinal, só se importando com a “fina” clientela, de empresários e comerciantes da região, que o procuravam para transações bancárias. Os demais afazeres, ou deveres, ficavam a cargo do Contador. A agência mais parecia um internato de meninos disciplinados, pois para isso tinha um disciplinador - sr. Paulo Bastos, do que mesmo com uma casa de negócios bancários. O rigor era tanto, até para os 15 minutos que tínhamos para o lanche, que antes fazíamos no bar do Mariano, um português, ou descendente, ao lado do prédio, onde desfrutávamos daqueles momentos de liberdade para trocarmos as nossas idéias, fomos proibidos. Mariano, então, trazia os nossos pedidos, entrando na agência com um enorme tabuleiro repleto de copos com café com leite e sanduiches de pão com queijo, ou misto com queijo e presunto, que conduzia até a Portaria, onde, cada um pegava o seu pedido, encaminhando-se, como criancinhas de jardins-de-infância, às suas mesas de trabalho. Tivemos que acatar, como uns cordeirinhos, as determinações ditatoriais do Contador. E o lanche passou a ser feito, por cada um de nós, em nossas mesas de trabalho. O pessoal de Portaria, em que eu me incluía, se isolava, para o lanche, numa sala, nos fundos do prédio, que abrigava os serviços concernentes. Era um verdadeiro regime de quartel, onde os sargentões trazem os recrutas no cabresto. E ninguém se manifestava. O medo e a covardia reinavam entre todos nós. Ninguém tinha a ousadia de se manifestar, por escrito, à Direção Geral do Banco, no Rio de Janeiro, sobre aquele “totalitarismo” reinante na Agência.

Um certo dia, fui designado pelo Contador – sr. Paulo Bastos, para levar qualquer coisa, não me recordo o quê, à Agencia Central, no centro da cidade. Aproveitei o ensejo e dei umas voltas rápidas no centro comercial, vendo algumas lojas, à procura de uma roupa (calça e camisa) para mim. Não levei mais do que uma hora nessa busca. Não me recordo se a minha ida e volta foi feita de táxi. Acho que foi mesmo num dos bondes que trafegavam naquela linha do Jabaquara às imediações da Praça da Sé. Por sinal, esse tipo de transporte era perfeito em São Paulo. Chegado de volta à agência fui logo solicitado a comparecer à mesa do sr. Paulo Bastos, que me interrogou qual tinha sido a razão da minha demora de retornar. Sem outra alternativa, inventei que havia me confundido com certas ruas da cidade, ficando meio perdido lá no centro, pelo que me aconselhou, com a sua peculiar maneira de sargentão, a fazer reconhecimentos noturnos do centro de São Paulo. Era uma dureza trabalhar ali. O ambiente mais parecia um quartel, com as disciplinas impostas pelos dois administradores, do que mesmo uma agência bancária.



Av. São João (anos 50)

O gerente, como citei atrás, fechado no seu gabinete, parecido até um rei, deixava os seus “súditos” (nós, funcionários) por conta do seu imediato, que dispunha de ‘carta branca’ para resolver todos assuntos relacionados com a Contadoria, incluindo-se, claro, o funcionalismo da agência. Certo dia, no entanto, logo que chegou para o expediente interno, das 8 às 10 horas, o sr. Orlando Baldi não foi direto para a sua sala, dirigiu-se à sala da Portaria chamando o servente Tanil, que era uma figura, alegre, brincalhão como ele só. Seu primeiro nome era Elias. A “missão” do Tanil para o gerente era limpar a sola de um dos seus sapatos, grudada de excremento de cachorro, em que pisou logo que desceu do seu carro em frente à agência. O “lorde”, que não era inglês, mas um paulista ou paulistano muito prepotente, não podia, ele mesmo fazer aquele “serviço”. Era humilhante, sem dúvida, para a sua posição de “mandatário” daquele território do Banco do Brasil. Tanil, como servente, cabia-lhe aquela missão. Mas, o espirituoso e bem humorado funcionário não deixou por menos. E, como vingança, na hora de levar a bandeja com o cafezinho para o “chefão”, com agilidade, deu um bote com a mão numa mosca que circulava no recinto da Portaria, esmagando o inseto junto com o açúcar já na xícara, fazendo uma mistura em que adicionou o café quente. Retirou com uma colherzinha a sujeira da superfície do líquido e, imediatamente, foi servir o habitual cafezinho ao Gerente, que bebericou aos pouquinhos o “moscafé” do Tanil, vingado, assim, da humilhação por que passou limpando a bosta de cachorro grudada num dos sapatos do sr. Orlando Baldi, que a tudo assistia, em pé, com a perna cruzada, virada para os olhos de Tanil, agachado, com um pequeno instrumento na mão, fazendo o “trabalho”.

Aquele servente era quem “desopilava os nossos fígados”, saturados do ambiente de serviço constrangedor a que nos submetiam aqueles administradores, com as suas tiradas engraçadas. Lembro-me de uma ocasião em que ele chegou no nosso recinto da Portaria, depois da limpeza dos dois W.Cs., que serviam à agência. Ainda com os apetrechos (vassoura, balde, panos-de-chão etc) nas duas mãos, com aquela sua maneira hilariante de se expressar, contou que estava com o braço direito por demais cansado de tanta força que fez para empurrar sanitário abaixo, com o cabo da vassoura, um volumoso excremento, que tinha certeza, era “fruto” do “sêo” Aristides, pois tinha sido ele o último funcionário a utilizar o sanitário. “Sêo” Aristides, escriturário, era um tipo de estatura mediana, meio entroncado, quase sem pescoço, moreno. Assim, pelo biotipo do funcionário, conforme se expressou Tanil, aquele “tijolo” só podia ter saído do Aristides. Essa e outras daquele servente alegravam os nossos rápidos instantes de contato, suavizavam o ambiente pesado que reinava naquela dependência do Banco.

Tive bom relacionamento, não só com os colegas do quadro de Portaria, a que eu pertencia, bem como com os escriturários, o pessoal da Contabilidade. Consideravam-me, talvez, por reconhecimento, modéstia à parte, ao meu nível cultural. Eu tinha deixado Alagoas sem ter tido êxito no vestibular de medicina na Universidade Federal de Pernambuco. Sabiam que eu tinha instrução ginasial e colegial. Talvez até mesmo o sr. Baldi tenha reconhecido a minha instrução escolar, colocando-me como recepcionista na ante-sala do seu gabinete. Ali eu ficava lhe anunciando esse ou aquele cliente que chegasse para tratar de assuntos concernentes aos interesses do Banco. Ali, na minha mesa, como os demais funcionários, atendendo a “ordem-de-serviço” do Sr. Contador, eu fazia o meu lanche, que, geralmente, era um copo de café com leite e um sanduiche de queijo com presunto ou mortadela. Uma tarde daquelas deixou-me num sufoco que nunca havia experimentado. O gerente atendia a um cliente no seu gabinete, quando, por uma distração, bati com a mão esquerda no meu copo de café, derramando todo o líquido tanto na mesa como pelo carpete verde que forrava o chão do ambiente da minha sala. O pavor que me tomou de ser flagrado pelo gerente naquela situação, fez com que eu limpasse a sujeira, como por milagre, por menos de cinco minutos. Corri até a sala da Portaria, trazendo um pano de chão bem molhado, que me salvou de uma repreensão, possivelmente, temia eu, face ao rigor que reinava naquela agência.

(Av. São João com a Ipiranga)

Em São Paulo permaneci por quase um ano. Ainda assisti às festividades do IV Centenário da fundação da cidade (25 de janeiro de 1554). Em 1954, vi de perto o orgulho dos paulistanos, e com muita razão, pelas homenagens transcorridas com festejos cívicos e populares, desde as primeiras horas da manhã. O dia todo foi de festa. E eu ali, nordestino, como tantos outros, aqueles que chegaram lá bem antes de mim, que contribuíram para a grandeza da cidade, os apelidados “paraíbas” e “baianos”, de pouca instrução escolar até, mas corajosos, que em muito trabalharam, pesado, é bom frisar, para a construção dos alicerces que levantaram esse monumento que hoje é São Paulo, que, de fato, muito deve também aos valorosos nordestinos.





Aprendi a gostar da cidade, mesmo sofrendo com a friagem úmida do seu inverno, que parecia doer até nos ossos da gente. E à noite então, na hora de dormir...!? Pelo amor de Deus! A propósito, fui aconselhado, não sei se por algum colega, a forrar de jornal o colchão da minha cama, deixando por cima o lençol que a cobria. Dava algum resultado mesmo. Não entendi a “química” daquele procedimento. A composição do papel-jornal deve ter algo diferente dos papéis comuns, os que servem para empacotamento de mercadorias. A razão é tanta que, quando compramos nos mercados frutos ainda verdes, somos aconselhados a embrulhá-los em jornais, adiantando, assim, o seu amadurecimento. Aquele conselho que recebi, muito me ajudou a enfrentar as noites “geladas” da Paulicéia, quando, algumas vezes acompanhadas daquela garoa, lembrando até, como diziam, o “fog” que acontece em Londres. Gostava de fazer lanches, ou comer pedaços de pizzas, nos domingos, nas agradáveis e freqüentadas lanchonetes da Avenida São João ou da Ipiranga, onde também se concentravam os bons, bons mesmo, cinemas. A famosa, hoje, Avenida Paulista ainda não tinha nascido. Segundo dados históricos, ela foi inaugurada, com o nome de Avenida das Acácias, em 8 de dezembro de 1981, passando logo depois a chamar-se Avenida Paulista em homenagem ao seu povo. São Paulo ainda não era essa “selva de pedra”, esse mundo de concreto-armado” de hoje. A gente contava nos dedos os edifícios mais altos, construídos na zona central da cidade, destacando-se o prédio do Banespa, da Agência Centro do Banco do Brasil. O primeiro arranha-céu – o Edifício Martinelli, que recebeu o nome do seu construtor, Giusuppe Martinelli, foi iniciado em 1924 e inaugurado em 1929, sendo o primeiro arranha-céu do Brasil e da América Latina, segundo dados históricos.



(Edifício Martinelli)

Os shoppings não existiam ainda, nem metrô, que só em 1969 foi criada uma Companhia para construir aquele meio de transporte para São Paulo. Os bondes, de primeiríssima qualidade, atendiam muito bem o serviço urbano. O cruzamento da São João com a Ipiranga era, naquela época, o “point” da vida noturna da cidade, onde se misturavam também, discretamente, pederastas e prostitutas em busca de aventuras em troca de dinheiro, claro. Não havia motéis ainda. Os encontros íntimos se faziam nos sobrados de ruas adjacentes. Na Avenida Rio Branco, já pelas 21 horas, havia o “trottoir” de mundanas para o comércio do sexo. Alguns “dancings”, naquelas redondezas, abriam suas portas para maiores de 18 anos. Pagava-se para dançar. E ficava por conta da dançarina, que conduzia um pequeno alicate furador, o valor a pagar na saída. Cada picotada no cartão valia um tanto (?). A cidade já contava com uma razoável vida cultural, sendo o imponente Teatro Municipal o foco das apresentações de peças teatrais e concertos de orquestras filarmônicas. Os artistas populares já se destacavam, entre eles, Adoniram Barbosa com a sua “Saudosa Maloca”, Trem das Onze” e outras músicas que muito bem caíram no gosto do povo. O conjunto vocal “Demônios da Garoa” fazia também muito sucesso na popularidade da vida paulistana. Isaurinha Garcia e Hebe Camargo eram destaques entre outras cantoras que se apresntavam em auditórios das Rádios, que transmitiam seus programas, que ainda não eram em FM (frequência modulada), não só para a Capital como para todo território nacional.

A Praça da Sé e a Praça da República, como o Viaduto do Chá, o Viaduto Santa Efigênia, o Largo do Arouche e Largo de São Bento, durante o dia, fervilhavam de gente se cruzando em sentidos contrários, por sinal, bem vestida; muitos engravatados até, que deviam trabalhar, por certo, em escritórios, repartições municipais e bancos, Outra coisa que registro aqui, é que a violência nem sonhava ainda nascer nas ruas e bairros de São Paulo. A vida transcorria em perfeita paz. Longe estavam esses dias nebulosos, tristes da atual “Cracolândia” e dos donos de pontos de drogas, que hoje proliferam, não só na periferia, mas em determinados lugares do centro da cidade. Não se via miseráveis arranchados embaixo de viadutos, como hoje, com toda a opulência dos dias atuais de São Paulo. O número de veículos transitando era bem menor, não deixando margem para o que acontece atualmente, com quilômetros de engarrafamentos, como acontece agora, todo dia, nas Marginais Tietê e Pinheiros, e nos finais-de-semana e feriados, quando os paulistanos deixam a cidade em busca do litoral. É o resultado do progresso com as suas inevitáveis consequências.

Não me recordo, na minha despedida, transferido que fui, por permuta, para o Rio, se me despedi dos “chefões” da Agência Metropolitana Bosque da Saúde, apertando as mãos “de ferro” daqueles senhores. Vi tanta injustiça cometida por eles, administradores, com o pacato funcionalismo, tanto da Contabilidade como da Portaria, que nem fui dizer “até logo” àqueles “ditadores”. Se me despedi, foi com um curto “adeus”. E bem melhor teria sido um “até nunca mais”. Despedi-me, que me lembro, do Sr. Nelson Gaia Penteado, um paulista, educado, que era Chefe do Cadastro, que também não “engolia” aquela disciplina imposta na Agência, bem como do Hélio, Euclides, Serrano, Carioca, Gaúcho, Bolinha, Zequinha, Marcelo e Nélio. Aliás, com esse último que enumerei, aconteceu um fato até hilariante. Ele não perdia qualquer oportunidade para trocar algumas palavras com esse ou aquele colega. Um dia, ele, que devia ter ido ao WC. E, na volta, parou na mesa de outro colega para um ligeiro papinho, que não foi muito adiante porque o Contador, de que nada escapava de sua vigilância, levantou-se da sua poltrona e foi direto ao Nélio perguntar o quê ele fazia ali. Nélio, com certo deboche, respondeu de pronto que estava “botando a conversa em dia”. Não sei qual foi a reação do sr. Bastos. Marcelo, entre os colegas acima, pernambucano, chegado à Agência, vindo do Recife, depois de mim, não agüentou o clima frio de São Paulo e, muito especialmente, o regime adotado pelos administradores do Banco. Não sei como conseguiu voltar tão logo para o Recife, porque não chegou a completar um ano trabalhando ali. Foi embora primeiro do que eu. Uns eram apelidados, como escrevi acima. Tudo fazia parte da boa camaradagem que reinava entre os colegas. Aquela dependência do Banco, tempos depois, passou a chamar-se Metropolitana Jabaquara. Elias Tanil, aquele que esmagou uma mosca no café do Gerente, foi o único que esteve comigo na Rodoviária até a partida do meu ônibus para o Rio, às 23 horas. Tempos depois, ainda voltei a São Paulo, acho que em 1957 ou 1958, para prestar concurso interno para a carreira de Contabilidade. E 1959, casado, ali passei cinco dias em “lua-de-mel”. Pisei, outra vez, a terra daquela grande cidade; hoje, a maior da América Latina e a 4ª maior aglomeração urbana do planeta, tendo mais de 11 milhões de habitantes, fundada pelos jesuítas Manoel da Nóbrega e José de Anchieta em 25 Janeiro de 1554. Quero acrescentar, por fim, que São Paulo é também um orgulho para nós, embora não sejamos paulistanos, mas somos brasileiros, iguais a eles, irmanados, pois, no mesmo espírito de brasilidade.

Estava eu (transferido), então, para a Cidade Maravilhosa, para aquele Rio de Janeiro, admirado não só pelo seu povo, pelos cariocas, mas pelos brasileiros de todos os recantos do Brasil. Era ainda o Distrito Federal, onde a Presidência da República, o Senado Federal e a Câmara dos Deputados ditavam as normas da política nacional. “Foi capital do Brasil Colônia a partir de 1763, capital do Império Português na época das invasões de Napoleão, capital do Império do Brasil, e capital da República até a inauguração de Brasília, na década de 1960. É também conhecida por Cidade Maravilhosa, e aquele que nela nasce é chamado de carioca.”















(Monroe – Ed. menor)

No Rio, vivi o 2º Capítulo da minha vida até o ano 1962. No período ali vivido, ainda existia o Palácio Monroe, que se vê na foto (prédio menor), criminosamente demolido em 1976, por determinação do general-presidente Ernesto Geisel, com o total apoio de Roberto Marinho e do arquiteto Lúcio Costa. O Globo, nos editoriais do seu presidente, Roberto Marinho, alegava que o prédio atrapalhava o trânsito na Av. Rio Branco. E, por sua vez, Lúcio Costa justificava dizendo que o Monroe iria causar problemas na construção do metrô do Rio, como se os trens fossem trafegar na superfície. Pode? “Geisel nutria um ferrenho horror pelo filho do Coronel Arquiteto Francisco Marcelino de Souza Aguiar, projetista do Palácio Monroe. A raiva que Geisel sentia dele foi originada quando o filho de Souza Aguiar foi promovido no Exercito em detrimento de Geisel.” Ali, ele despejou a sua baba peçonhenta, por vingança, destruindo um monumento que integrava uma parte preciosa da História do Brasil. No Moroe, até então, era onde funcionava o Senado Federal. Contudo, o Rio continuou lindo, sendo, no meu modesto parecer, a cidade mais bonita do Mundo, emoldurada pelas suas montanhas do Pão-de-Açúcar, Corcovado, Pedra da Gávea, Tijuca, Pavãozinho, Rocinha e outras. No meu tempo, a Barra da Tijuca ainda era um sonho dos administradores, isso pelos idos dos anos 50. Para quem não sabe, “O nome – Monroe (dado ao prédio do Senado) foi uma homenagem ao Presidente americano James Monroe, por sugestão do Barão do Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores. Monroe foi o criador do Pan-Americanismo e, naquele local, realizou-se a "Terceira Conferência Pan-Americana".

Quando desci do ônibus, vindo de São Paulo, na Rodoviária, que ainda era a antiga, nas imediações da Praça Mauá, ninguém também me aguardava. E lá fui eu outra vez bater à porta do meu irmão, que estava ciente da minha chegada ao Rio naquela manhã de domingo de céu nublado, muito fria, que não esqueço. Mas, que não se dignou ir me receber no Terminal Rodoviário.

Apresentei-me, para reassumir, ainda como funcionário de Portaria, poucos dias depois, na Agência Central, à Rua 1º de Março, 66, onde, hoje, é o Centro Cultural do Banco do Brasil. Além dessa atividade, ali se encontram históricos da vida da instituição, à qual tenho muito orgulho de ter pertencido. E continuo a pertencer, embora aposentado, desde 1984. Ali, encontrei bom ambiente de trabalho.

(Antiga Ag, Central do BB, agora Centro Cultural)

Ao Banco, posso dizer, com orgulho, que me dediquei de corpo e alma, deixando de lado até o interesse de partir para outra profissão, prestando um vestibular qualquer, para qualquer outra carreira. Faltou-me estímulo. Não sei nem dizer por quê. O que estava me interessando, naquela altura da minha vida, era entrar para o quadro de Contabilidade, ser escriturário de carreira. Era o meu objetivo. E isso só veio acontecer em 1958, quando, só na cidade de São Paulo, o Banco fez um concurso (interno) para resolver a situação de muitos funcionários de Portaria, desejosos de mudarem de situação funcional. Conquistei, afinal, aquela minha pretensão.

Já no Rio, em agosto de 1954, o Brasil foi surpreendido com o suicídio de Getúlio Vargas. À frente do Palácio do Catete grande multidão compareceu, formando fila quilométrica para se despedir do líder populista, que disse: Só morto sairei do Catete. E realmente saiu.

(Jornal Última Hora)

Eu mesmo entrei na fila, só por curiosidade, pois, naqueles dias da minha vida, ainda não me despertava qualquer paixão por ideais políticos. Embora acompanhasse a campanha ferrenha do jornalista Carlos Lacerda, udenista (UDN), partido do Brigadeiro Eduardo Gomes, contra Getúlio Vargas, que estava envolvido num “mar de lama” nos porões do Palácio do Catete, como dizia o jornalista no seu combativo jornal Tribuna da Imprensa.

O Rio era ainda de muita paz, sem essa violência de agora. Os traficantes não eram os “donos” dos Morros, que eram habitados por gente simples, trabalhadora. Eu mesmo, nas minhas noites em Copacabana, quando os lotações (mini-ônibus) escasseavam em circulação depois da meia-noite, muitas vezes, pela a Av. Siqueira Campos, caminhava sozinho, entrando no Túnel Velho para sair em Botafogo, onde morava. E o Rio continua ainda mais lindo, mesmo com a insegurança por que, atualmente, o alegre e hospitaleiro povo carioca está vivendo.

O meu primeiro desempenho, como escriturário “Inicial”, foi numa agência do Banco na zona portuária, perto da Praça Mauá, na Rua do Livramento, no bairro da Gamboa. Pouco tempo por ali fiquei, transferido que fui para um departamento da Direção Geral, no Edifício Itaboraí, na Av. Getúlio Vargas, perto da Igreja da Candelária.

O bonde, que era o meu meio de transporte, como de 80% da população carioca, partindo da Zona Sul, dos bairros de Copacabana, Leblon, Ipanema, Botafogo e Laranjeiras, chegando até ao Largo da Carioca, no Terminal Tabuleiro da Baiana. Outros bondes também serviam a bairros da Zona Norte, como Tijuca, Meyer, Engenho de Dentro, Cascadura, Penha, Bonsucesso e outros. Havia os chamados “lotações”, com assentos limitados, não se viajando em pé, como nos ônibus que também circulavam para aqueles bairros e outros da Zona Norte, beneficiada também pelos trens da Central do Brasil. O metrô do Rio só começou a operar em março de 1979, na administração do governador Chagas Freitas.



(Bonde do Rio)

Os bondes saíram de circulação, substituídos que foram pelo transporte moderno do metrô. Por lembrança, restou apenas o bondinho de Santa Teresa, que faz o trajeto por sobre os Arcos da Lapa. “A estação dos bondes funciona diariamente, das 7:00h às 21:30h e fica na rua Lélio Gama, sem número (ao lado do prédio da Petrobras). A linha é de 1896, mas o terminal é bem mais recente, pois foi reconstruído à medida que a cidade foi crescendo. Infelizmente o terminal é uma construção moderna horrorosa que nada tem a ver com o bonde. Contrastando com a estrutura reta do local, a área de manobra dos veículos lembra mais um jardim. É dali que se toma o bondinho, rumo a Santa Teresa.”

(Bondinho Sta.Teresa)

O transporte aéreo, no Brasil, era privilégio da classe mais alta daquela época. As companhias de aviação que se destacavam, Cruzeiro do Sul, Panair do Brasil, atendiam àquela classe “A”, que assim já podíamos chamar. Aos mais modestos, em que me incluía, os vôos eram oferecidos pela Aerovias Brasil e Lloyd Aéreo. Lembro-me que, numa das minhas viagens a Alagoas, de férias, numa das aeronaves da “Aerovias”, deixando o Aeroporto Santos Dumont às 5h da manhã, a aterrissagem aconteceu às 5h da tarde no Aeroporto de Maceió. O trajeto do vôo tinha descida obrigatória em Vitória, Ilhéus, Itabuna, Jequié, Salvador, Aracaju e, finalmente, Maceió. Foi uma verdadeira maratona naquele sobe-e-desce. Pelo amor de Deus!...E foi a minha primeira viagem de avião, pois, quando deixei o Nordeste foi a bordo de um “ita”, como disse no início.

A televisão dava os seus primeiros passos, naquela minha época no Rio, bem como em São Paulo. Teve início em setembro de 1950, trazida por Assis Chateaubriand, que fundou o primeiro canal na TV Tupi. O Rádio e o Teatro dominavam o mundo do entretenimento. Na Praça Tiradentes, o Teatro Recreio lotava, nas apresentações do produtor Walter Pinto, com as suas revistas, em que se destacavam famosas vedetes, como Rose Rondeli, Mara Rúbia, Nélia Paula, Virgínia Lane e outras. No teatro, Procópio Ferreira, Bibi Ferreira (filha de Procópio), Paulo Gracindo e outros faziam sucesso na vida cultural (teatro é cultura) da cidade. O cinema brasileiro, com as suas chanchadas, agradava meio mundo de espectadores com suas comédias, trazendo em cena as figuras de Oscarito, Grande Otelo, Zeloni. Atlântida Cinematográfica, que era a nossa produtora de filmes, tinha em seu elenco artistas, entre outros, como Renata Fronzi, Anselmo Duarte, Catalano, José Lewgoy, Fada Santoro e Renato Restier. As salas de cinema, que eram boas salas, por sinal, instalavam-se em prédios no Centro do Rio e em alguns bairros. Na Cinelândia se não me engano, havia seis ou mais salas, denominando-se, por isso – Cinelândia.

(Cinelândia-Rio)

Muito aprendi no Rio de Janeiro, na “escola” da vida. Nos meus 24 anos de idade, enfrentando certos obstáculos que se me depararam, vivendo praticamente só na cidade grande, sem aquela vivência natural dos cariocas. Tomando, dia a dia, lições, adquirindo experiências, que, quando não temos alguém de lado para nos ajudar, facilmente absorvemos. Vivi quase “distante” do irmão que ali já vivia, introduzido no Banco que fui por ele, usando o prestígio de alguém, de algum colega seu da Direção Geral. Fiz as minhas amizades nos círculos de conhecimento que tive, tanto no trabalho como fora do Banco. Morei em “repúblicas” com dois ou três daqueles conhecidos. E levava a vida “na valsa”, sem preocupação financeira, porque o Banco, com o meu trabalho, garantia a minha sobrevivência. Na minha conta bancária, religiosamente, todo fim de mês, os meus vencimentos eram creditados. Aprendi, também, a controlar os meus gastos pessoais. Nunca ultrapassava o meu limite, nem mesmo aproveitando as noites das sextas-feiras e sábados da vida alegre do Rio, principalmente de Copacabana, o bairro mais badalado, desde aquele tempo.

E eu já vivendo no Rio, era ainda um ‘turista’. Aos poucos, fui descobrindo as maravilhas, as belezas da terra carioca. Até mesmo, por incrível que pareça, o baixo meretrício. “Na Lapa, na rua Conde Lage e adjacências, localizavam-se os bordéis elegantes da cidade - os prostíbulos ordinários ficavam na "Zona do Mangue", próximo da Praça 11, onde surgiu o samba. ("Zona" passou a significar local de prostituição. Quando se queria dizer que uma mulher se prostituíra dizia-se que ela "caiu na zona" ou era "uma mulher da zona." Só não recebi a faixa de cidadão-honorário, porque era “um-joão-ninguém”, perdido na multidão, mas, eu amava, como ainda amo, a terra carioca. Entre outras maravilhas do Rio, para mim, foi que ali casei e nasceram ali, em Botafogo, as minhas duas filhas Márcia (em 1959) e Kátia (em 1961). Tenho orgulho disso.

(Zona do Mangue)

Vê-se, acima, pequena mostra de uma das ruas da Zona do Mangue, em início de noite, com ainda reduzido número de “profissionais” do sexo, e de visitantes. A AIDS não era ainda o ‘bicho-papão’ na década de 50, época em que vivi no Rio. Conforme registros, o primeiro caso aconteceu, no Brasil, em 1982. Mas, outras infecções eram passíveis de contágio, como a sífilis e outras doenças venéreas. A prevenção, para quem se cuidava, era, como é até hoje, a ‘camisinha’. O “negócio” de meninas-de-programas, e, agora, também garotos-de-programa, ainda não estava “oficializado”, com agentes, estabelecidos, com telefones etc, para esse comércio da prostituição. Os anúncios, em alguns jornais, oferecendo mulheres para sexo, começaram a aparecer depois que as chamadas casas de tolerância entraram em decadência, com as desapropriações de sobrados antigos, onde, geralmente, funcionavam os prostíbulos, dando lugar a prédios modernos.

O Carnaval do Rio, naquela década, não tinha ainda esse deslumbramento de hoje, exibido na Marquês de Sapucaí. Era modesto. Posso dizer, porque presenciei alguns desfiles. As Escolas, sem grandes ornamentações, davam início aos desfiles na Av. Getúlio Vargas, na antiga Praça 11, entrando na Av. Rio Branco, findando, em apoteoses, na Cinelândia. Não me recordo se havia arquibancadas, cobrando-se ingresso para assistir aos desfiles do reinado de Momo. Nos blocos de rua o povo brincava de verdade, como se vê, abaixo, e não se limitava, como hoje, a ver o exagero das Escolas, com milhares de figurantes, inclusive com mulheres quase nuas, insinuantes, dentro de uma ‘arena’, que é o Sambódromo. E nas arquibancadas, aprisionada, a massa popular, em histeria, requebra e se agita, sem nenhum direito de participar da festa, que, de fato e de direito, é uma festa do povo. Industrializaram o Carnaval, que a poucos pertence.



E, falando em blocos de rua, não se pode deixar de lembrar o mais famoso bloco de rua – Cordão da Bola Preta - que dava o início aos dias de Carnaval do Rio.

Quem não chora, não mama / Segura meu bem, a chupeta

Lugar quente é na cama / Ou então, no Bola Preta.

Vem pro Bola, meu bem / Com alegria infernal

Todos são de coração / Todos são de coração

Foliões do Carnaval / Sensacional!"

(Nelson Barbosa / Vicente Paiva - 1962)



“Enquanto os versos famosos do hino do Cordão da Bola Preta não forem entoados, no centro do Rio de Janeiro, ao meio-dia do Sábado Gordo, precedidos das tradicionais clarinadas, o carnaval carioca não estará oficialmente aberto. O que acaba sendo mais uma ironia da mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, famosa por seu bom humor.” (De registros).

Hoje, o Carnaval virou uma indústria auferível, movimentando fábulas, em dinheiro, que não sei de onde vem, nem para onde vai. É um mistério, eu acho. O Sambódromo, outra grande obra de Oscar Niemeyer, é a fonte de dinheiro nos dias dos desfiles. E essa arrecadação será contabilizada pela Prefeitura do Rio, ou pelos presidentes das Escolas? Haverá distribuição de lucros? Algum resultado positivo, monetário, deve haver. E o “leão” da Fazenda? As Escolas, como as Igrejas, serão desobrigadas de Imposto de Renda? Como não sou economista, como muitos iguais a mim, alguém poderia nos esclarecer isso? Deixo no ar a questão...



(Samdódromo)







E o Rio continua lindo com Carnaval ou sem Carnaval, embora na luta cotidiana contra a violência, contra os traficantes, que instalaram um poder paralelo em determinadas Favelas, com armamentos, muitos, superiores aos utilizados pela Polícia. Com os últimos acontecimentos de incêndios de veículos em variados setores da cidade do Rio de Janeiro, comandados pelos chefes do tráfico de drogas, desafiando o Poder Público, o Governo do Estado, com o apoio total do Governo Federal, enfrentou o desafio dos bandidos, e foi à luta. Policiais militares e civis, com a cobertura das Forças Armadas, entraram no Complexo do Alemão, que era uma espécie de quartel-general, desalojando a bandidagem, e, ao que, tudo parece, trazendo paz à gente simples e ordeira que ali habita. E Copa de 2014 está aí. A segurança é um item primordial na agenda dos responsáveis pelo evento, que trará ao Brasil e, principalmente, ao Rio, multidões de estrangeiros, aficionadas pelo futebol. A repercussão, pelos jornais de todo o mundo, dessa guerra entre o Estado Brasileiro e os marginais do tráfego de entorpecentes, poderá enfraquecer o entusiasmo dos estrangeiros pela Copa no Brasil, desconfiados com a insegurança por que experimentariam em solo brasileiro. São três anos ainda até lá. É tempo suficiente para que o governador Sérgio Cabral garanta a realização das competições no Rio, dando certeza, garantindo aos cidadãos que a Paz reinará em todos os quadrantes da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, tudo fazendo crer que já teve início agora,







sem mais cenas como esta, quando da invasão do Complexo do Alemão, em 28.11.2010, fotografadas por repórteres, inclusive, estrangeiros, levando ao Mundo o retrato do poderio do narcotráfico, que trouxe às ruas soldados e carros blindados do Exército Brasileiro. Arrancar pela raiz esse ‘cancro’ dos entorpecentes, da cocaína, principalmente, com os quilômetros de fronteira, que tem o Brasil com nove países, propiciando, ainda, o contrabando de armas poderosas e munições para reforçar o poder paralelo dos narcotraficantes, é uma tarefa difícil, mesmo com determinadas providências a cargo das Forças Armadas. Com essa nossa fronteira, o Brasil também tem sido um caminho fácil, um corredor aberto para a exportação da cocaína da Colômbia ou da Bolívia, camuflada de variadas maneiras, através de portadores “laranjas”, ou não, para aeroportos da Europa. E a verdade é que a “droga” já se difundiu também pelo mundo inteiro.

UM PRESENTE DE GREGO – Assim posso chamar. Em 1961, eu trabalhava no Departamento do Funcionalismo (FUNCI), que ficava no 6º andar (era o último) da Agência Central do Banco, na Rua 1º de Março (Nº 66). Já como funcionário da Contabilidade, aprovado em concurso interno. Era encarregado da movimentação dos funcionários de Portaria (contínuos e serventes). Um dia, procurou-me um funcionário (servente) de uma agência de São Paulo (Capital). Ele estava às vésperas de sua aposentadoria. E, assim, desejava ser transferido do quadro de “servente” para “contínuo”. Melhoraria, um pouco, a sua remuneração. Levei o caso ao meu Chefe (Dídimo Peixoto de Vasconcelos), que autorizou a reivindicação do solicitante, que era, por sinal, um senhor modesto e educado, aparentando uns 50 anos de idade. Dias depois, recebi um telefonema de São Paulo. Estranhei. Do outro lado da linha escutei a voz do “novo” contínuo, que me presenteava com um belo exemplar de cachorro, da raça bassê, que devia ser o animal de estimação da família. A “encomenda” foi despachada, de trem, de São Paulo. E que tive de ir receber na Central do Brasil. O pequeno animal me fez uma “festa” danada. Parecia que já me conhecia. Lamentavelmente, tive que me desfazer do “linguiça”. Eu morava, naquela ocasião, num apartamento de quarto-e-sala. A minha filha (Márcia), com três anos, apavorou-se com o animal correndo e pulando dentro de casa. E o “presente de grego” fui obrigado a passar para frente, cedendo a doação a uma vizinha do andar superior, que o aceitou com muito carinho.







(Rua do Ouvidor em 1957)



Na década de 60, a mulher brasileira começava a adotar a vestimenta que era exclusividade do homem – a calça comprida. Antes, cumpria o que apregoavam as religiões: “A mulher não usará roupa de homem, nem o homem veste peculiar à mulher; porque qualquer que faz tais coisas é abominável ao Senhor, teu Deus.” As rodadas saias-compridas, aos poucos, foram substituídas pelas, agora, estilizadas calças jeans, já aceitas até nos locais de trabalho de funcionárias públicas, comerciárias, bancárias etc. Nas praias, os maiôs das banhistas, em Copacabana, Ipanema e Leblon, eram discretos. Os tipos biquínis, “fio-dental” e “asa-delta” entraram para valer na vida das cariocas nos anos 80. Nos anos 70, as frequentadoras das areias de Copacabana já mostravam seus corpos com maiô duas-peças.









Largo da Carioca – década de 50)

Naquela época (década de 50), no Banco, tínhamos dois clubes recreativos, a AABB e o Satélite, este freqüentado pelo pessoal de Portaria. Havia, a meu ver, uma certa discriminação, separando, assim, as duas classes: escriturários e contínuos. Anos depois, aquele sentimento preconceituoso foi desaparecendo. E alguma determinação, não sei se partida da Presidência do Banco, acabou com o “orgulho” dos associados, os escriturários da Contabilidade. Hoje em dia, o Clube é um só, acolhendo, para todas as suas atividades, todos os funcionários, sem distinção. Naqueles dias, já bem distantes, mesmo como contínuo, por convite ou amizade, frequentava os bailes da AABB, que ficava na Tijuca. No Carnaval de 1958, conheci Ezetilde. E, em 10.01.1959, casamos. Foi um solenidade modesta, na residência de um primo de Ezetilde (Aníbal), no Estácio, ministrada por um pastor presbiteriano.

(10-01-1959)





Tivemos um modesto começo de vida, morando num apartamento de quarto-e-sala. A vida a dois, mesmo não sendo um mar-de-rosas, tivemos os nossos bons momentos de felicidades. Houve, como ainda há, “as pedras” no nosso caminho, os altos e baixos que acontecem até às “melhores famílias”. E, aos trancos e barrancos, “entre tapas e beijos”, como fala uma certa música popular, vamos levando o “barco”, evitando naufragar no revolto “oceano“ da vida, que já nos trouxe até hoje a esse “porto” de 2012.

RECORDANDO. No intervalo de namoro, de 58 a 59, aprovei-me, em concurso interno do Banco, galgando, então, a carreira de Contabilidade, não pertencendo mais, assim, ao Quadro de Portaria do Banco, em que até, então, fazia parte do contingente dos funcionários chamados “contínuos”. Havia também, daquele Quadro, os “serventes”, encarregados dos serviços de limpezas. Foi quando voltei a São Paulo, pela segunda vez, juntamente com outro colega que experimentava a mesma situação que eu, pois, de “contínuos” queríamos passar para “escriturários”. Fomos e vencemos. Dali para diante, não tive mais contato com aquele colega, que, como seu desejo, aprovado que fosse, queria voltar para sua terra-natal, Corumbá ou Cuiabá (MT). Como Escriturário-Inicial, fui designado para trabalhar na agência da Gamboa, que ficava perto do Cais do Porto. Se não me engano, era a Metropolitana Livramento. Passei pouco tempo ali. Logo, fui transferido para a Direção Geral, para o Departamento do Patrimônio Imobiliário (DEPIM). Com a mudança da chefia daquele setor, dispensado do Gabinete, como outros colegas, apresentei-me no Departamento do Funcionalismo (FUNCI), para ser lotado em qualquer outro local. Felizmente, não sei por quê, fiquei ali mesmo no FUNCI.

TRANSFERÊNCIA PARA BRASÍLIA – Este, posso dizer, foi o terceiro capítulo da minha trajetória, depois que “peguei um “ita” no Nor...deste” e fui para o Sul (São Paulo e Rio de Janeiro). Juscelino Kubitschek, mais do que Pedro Álvares Cabral, tinha descoberto o Brasil, construindo a nova Capital do Brasil – Brasília. A euforia explodia de norte a sul. O Planalto Central era a Meca brasileira. Todos, ou quase todos, olhavam só naquela direção. As oportunidades eram alvissareiras até para colegas que desejassem para lá se transferir. O Banco oferecia vantagens financeiras, entre outras, como, tão logo, residir em imóveis construídos para os seus funcionários. De início, não tive qualquer entusiasmo de sair do Rio, a Cidade Maravilhosa, para me aventurar pelo “eldorado” brasileiro, “inventado” por JK no longínquo interior do Planalto Central. “...em 1955 foi delimitada uma área de 50 mil quilômetro quadrados – onde localiza-se o atual Distrito Federal. A construção da nova capital teve início em abril de 1956, no comando do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, com a criação da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (NOVACAP) e o projeto de lei 2.874, o governo lançou o edital do Concurso Público para a construção do Plano Piloto.”

"Deste Planalto Central, desta solidão em que breve se transformará em cérebro das mais altas decisões nacionais, lanço os olhos mais uma vez sobre o amanhã do meu país e antevejo esta alvorada, com uma fé inquebrantável e uma confiança sem limites no seu grande destino". Juscelino Kubistchek "

Em 1959, já casado, residindo num apartamento de quarto-e-sala, na Rua

Aristides Lobo, no Rio Comprido, vi que o nosso espaço estava reduzido, com as duas filhas, Márcia e Kátia, dormindo no mesmo (único) quarto. A nossa situação financeira apertou. Ezetilde não trabalhava. Pensamos em mudar de apartamento, que, com dois quartos atendia às nossas necessidades. Pesquisamos. Mas, as nossas possibilidades estavam bem aquém dos preços dos aluguéis de imóveis no mercado. Então, só vi uma saída, que era transferir-me para o novo Distrito Federal. Com informações de um colega, alagoano, por sinal, Wilmar Jatobá, que havia se transferido de Garanhuns (PE) para Brasília, não tinha outra saída senão conseguir, também, meu deslocamento para o DF de JK. Aí, como se diz, “o bicho pegou”. As transferências foram “trancadas”. Os pedidos, do Brasil inteiro, ultrapassaram a expectativa da Direção Geral do Banco. Já bastava o número de funcionários para ali deslocados. E agora? O quê fazer? Não pensei duas vezes e fui “chorar” a minha desilusão com o Chefe do Funci (Dídimo Peixoto de Vasconcelos), que, não sei como, confesso, convenceu alguém na Presidência, e a minha transferência foi autorizada. Isso aconteceu em 1962. Recebi do Banco ajuda de custo, incluindo até passagens de avião. E, só, parti para Brasília. A família seguiu depois, enquanto, em Brasília, eu aguardava as chaves do meu novo apartamento, no bloco ‘I”, da SQS 308. Nesse intervalo, como outros colegas, fiquei hospedado nos alojamentos que o Banco mantinha na SQS 303, onde, depois, nasceram ali outros blocos de apartamento. Hoje, desde 1999, vivo, melhor, vivemos nessa quadra. Não sei por quê, chamavam aquele alojamento de Lâminas. As refeições, muito boas, eram servidas num restaurante que ficava numa parte da Agência Central, em término de construção. Voei para o novo DF numa aeronave da desaparecida “Cruzeiro do Sul”, que atendia muito bem, nos seus vôos domésticos, com primoroso serviço de bordo, servido por comissárias bonitas, trajando, elegantemente, o uniforme da Companhia. A minha intenção, o meu pensamento era passar uma temporada, um ano ou dois, no máximo, tempo suficiente, acreditava, para fazer um “pé-de-meia”, uma boa economia, e voltar para o Rio, onde compraria um apartamento e lá me fixaria definitivamente. Gosto do litoral. Não sou pescador, mas admiro o mar. Como não somos donos de nosso destino, que a Deus pertence, o meu projeto para aquele “futuro” que almejava, foi de águas abaixo. O tempo foi passando e eu fui ficando, ficando, somando um ano atrás do outro.





(Este foi o meu primeiro carro, um “fusca” ano 1961, de segunda mão).



NA METROPOLITANA ASA SUL, assumi. Essa agência, por sorte, estava instalada na quadra 507, da Av. W-3. E o nosso apartamento ficava na SQS 308, de onde eu ia, a pé, para o trabalho. Ali, trabalhei até essa metropolitana ter o seu quadro de funcionários reduzido, transferidos alguns para a Agência Central, para onde eu fui também. Na Central, trabalhei por um bom período. Quando consegui uma “comissão”, depois de um longo período na “geladeira”, isto é, sem cargo comissionado, fui designado para chefiar subagências. Os colegas do “aquário” do Gerente – Nazareno Paranhos – eram beneficiados. Eu, como “peixe fora d´água”, penei um bocado na “vala comum”, como se dizia. Comissionado, então, “gerenciei” algumas daquelas extensões da Central, como no Tribunal de Contas da União, na Presidência da República, onde fiquei por dois períodos, no SNI (Serviço Nacional de Informações) e no DNER, onde me aposentei, em 09 de janeiro de 1984. Naquele período, o Banco negociou a venda dos apartamentos para nós, funcionários, ocupantes. Como proprietário, então, do imóvel, resolvi mudar de morada, trocando o apartamento por uma casa no Lago Sul, onde moramos até 1999. Dali, negociando a casa, na QI-9, viemos para o Plano Piloto, para a SQS 303. E aqui, no bloco ‘G’, abaixo, estamos há 12 anos. A próxima morada? Só Deus sabe...

(Bloco “G” da SQS 303)

E, de 1962 cheguei a 2011 vivendo em Brasília. Finquei, querendo ou não, as minhas raízes no Planalto Central. O início não foi fácil, com relação ao clima do Planalto, geralmente seco, devido à altitude de um pouco acima de mil metros. A vegetação, tipo cerrado, quase ou nenhuma umidade oferecia. O frio seco dos meses de agosto e setembro incomodava, em alguns, provocando tosse e até sangramento nasal, além de secar os lábios, que tínhamos de protegê-los com pomada de cacau. Recomendavam que, à noite, na hora de dormir, puséssemos, no quarto, vasilhames com água. Outro fator detestável era a poeira vermelha, natural do solo da região, talvez com elevado teor de ferro. Devido ao solo trabalhado pelas construções que se sucediam dia após dia, a poeira se levantava em redemoinhos, feitos pequenos ciclones, penetrando até nos cômodos, se abertos, dos apartamentos. Mas tudo melhorou, anos depois, com o plantio que fizeram os prefeitos, nomeados para governar a cidade, de gramados e árvores nas quadras residenciais. E, em Brasília, fui me acomodando, e a família também. As filhas (Márcia e Kátia) em franco aprendizado no Jardim de Infância da própria quadra em que vivíamos. Depois, em colégio particular de freiras, que, naquele início, já se estabeleciam no novo Distrito Federal. Minha esposa (Ezetilde), como enfermeira (Ana Neri), logo fez concurso para a Fundação Hospitalar do Distrito Federal. E, por felicidade, foi nomeada, pouco tempo depois, para chefiar um Posto de Saúde nas entre quadras 308/309, a um passo do nosso bloco residencial. Em Brasília, nasceram os netos Amanda e Paulo Guilherme, filhos de Márcia, e Marcel, filho de Kátia.

O clima da atmosfera pesada do regime militar dominava o País. “Podemos definir a Ditadura Militar como sendo o período da política brasileira em que os militares governaram o Brasil. Esta época vai de 1964 a 1985. Caracterizou-se pela falta de democracia, supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram contra o regime militar.” Só em 1985, respiramos aliviados, depois de 21 anos, em que a bota pesada dos militares tirou o pé das nossas cabeças. Só para registrar, os ditadores militares foram os generais Castello Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Garrastazu Medici (1969-1974 e João Baptista Figueiredo (1979-1985). Naquele período, muitos brasileiros, que combatiam o regime de exceção, uns foram presos e torturados, outros “desapareceram”, e alguns se exilaram em embaixadas estrangeiras, partindo dali para o exílio em países em que prevalecia a democracia. Não obstante os percalços, as humilhações por que também passou o criador de Brasília, prevaleceram os ideais do grande democrata que foi JUSCELINO KUBISTCHEK DE OLIVEIRA. E Brasília se consolidou como a Capital de todos os brasileiros. Aquele sim, foi o “cara”

(A ele, a minha homenagem)

Devo, posso dizer, o que amealhei, juntamente com Ezetilde, a este brasileiro, que, de uma forma ou de outra, estimulou-me a deixar o Rio de Janeiro, em 1962, para viver em Brasília, quando ainda a poeira vermelha da terra virada e revirada, para a construção da Nova Capital, fazia redemoinhos no céu do Planalto Central, em certas pancadas de vento. Vim no intuito de fazer o chamado pé-de-meia e voltar para a Cidade Maravilhosa. E a mais bonita do mundo. Mas, fui ficando, ficando e... fiquei. O Banco, entre outras vantagens, deu-me a oportunidade de morar bem, como a outros colegas, num apartamento (recém-construído naquele ano de 1962), de cento e poucos metros quadrados. Anos depois, tornei-me proprietário do imóvel, como aconteceu também com outros colegas, que vieram em busca da realização do sonho de JK. Aposentei-me em 1983. Trabalhei, além da Agência Centro (a Central ainda era no Rio), em subagências, que funcionam em repartições públicas. Chefiei a do Tribunal de Contas da União, do Palácio do Planalto (governo Médici e João Figueiredo), da ESNI e do DNER, onde me aposentei. Nesse tempo já residia no Lago Sul, na Q.I. 9, do Conjunto 7, Casa 12, onde, com a esposa e filhas, desfrutei de bons momentos, despertando-me até a vontade de pintar quadros a óleo, sem qualquer pretensão de concorrer com Michelangelo, Leonardo da Vinci, Picasso, Rembrant, nem com o nosso conceituado Candido Portinari. Abaixo, as provas do meu “talento”, que deixo para a posteridade, para a esposa, filhas e netos lembrarem de mim, se primeiro me for para outra dimensão, que, talvez, exista. A certeza disto, de um lugar verdadeiramente de paz, amor, fraternidade e tudo mais que seja melhor do que nesta vida material, de carne e osso, ainda tenho as minhas dúvidas. Perdoem-me os crentes, digo, os religiosos de todos os credos.





Deixando de lado as pinturas, enveredei-me pelos caminhos da informática, depois de ter tido como distração o rádio PX, com que me comunicava com alguns afeiçoados de outros países.

A Internet deu os seus primeiros passos no Brasil em 1988. Como milhões e milhares de pessoas pelo mundo, a Internet também me fascinou. Aprendi, sem qualquer ensinamento, ou curso, para este fim, aprendi a lidar com o computador, que, entre novidades que eu desconhecia, em muito me facilitou a escrever, bem melhor do que nas ultrapassadas máquinas de escrever Remington, principalmente trabalhos literários, poesias, contos e crônicas, uns até publicados em sites, desta natureza, na Internet, como este meu soneto abaixo, ilustrado por mim, editado no Recanto das Letras, que é um importante site de literatura da Internet.



NÓS



Nós, que outrora, vivemos tão felizes,

Compartilhando o mesmo amor tão puro.

E hoje aceitando, em vez de luz, o escuro

Das nossas diferenças e deslizes.



Mas, mesmo assim, eu te confesso. Eu juro.

E mesmo que mais nada valorizes,

Julgando-nos, então, dois infelizes,

Eu não perdi a crença de um futuro,



Em que, talvez, aquele amor da gente,

Que a minha alma, abatida, ainda sente,

Torne a acender a chama... a crepitar.



Aquele nosso amor, de ontem, tão forte,

Está doente, agora, quase à morte,

Necessitando se ressuscitar!



Nos meus 80 anos, completados em 15 de agosto de 2011, fiz este outro soneto, editado abaixo. Cheguei ao ponto em que a estrada já não é mais aquela reta que se perde no horizonte. Daqui para diante o “asfalto” vai se desgastando. Contudo, ainda vou caminhando sob o peso dos meus



OITENTA ANOS



Agora, só me restam poucos passos

Em minha vida. E nesta caminhada,

Quase chegando ao ponto de parada,

P ´ra repensar vitórias e fracassos.



Vitórias? Tive algumas nesta estrada,

Sem vivas, sem aplausos, nem abraços.

E, hoje, já vejo os derradeiros traços

Do que resta de mim, que é quase nada...



Anos são tantos, bem ou mal vividos,

De desejos e planos, uns perdidos;

Outros tantos, em pouco, alcançados...



E nos meus oitenta anos, penso, agora,

Que não esteja distante a infausta hora

De remir - face à morte - os meus pecados!



Paulo de Góes Andrade





























































































































































A FRUTA PROIBIDA






Ela fazia de propósito. Sentava-se sempre numa das carteiras da frente. A saia curta, insuficiente, deixava à mostra o triângulo da calcinha, às vezes branca, ou azul, ou vermelha, ou preta, até de bolinhas coloridas, entre as coxas. Mostrou-me quase toda a sua coleção. O meu olhar passeava lento, massageando as pernas daquela aluna. Eu me perdia. Divagava por segundos. A classe se entreolhava e me acordava do “branco” que me tomava. - Professor! E daí...!? - Daí...? Daí...? Ah!... Bem! Daí é que... Não me livrei da indiscrição de um aluno me interpelando, no w.c., se eu andava amnésico. Passei a usar óculos escuros, para me esconder da vigilância dos meus discípulos. Justifiquei. A luz do dia dava muita luminosidade ao ambiente. A sala sempre estava cheia. Quase ninguém faltava, pra minha satisfação. Havia interesse da turma pela matéria que eu lecionava: História Contemporânea. E, por incrível que pareça, Ariana se incluía entre os bons alunos. No intervalo das aulas, na sala dos professores, os colegas me achariam ridículo se pudessem ler o meu pensamento, a minha fixação, não só nas pernas torneadas, como no corpo inteiro da loura Ariana. Não sei por quê o nome? Mas, que era original, era sim, como mostravam os seus longos cabelos, não oxigenados, e o corpo isento de silicone. Parecia uma alemãzinha. Tinha Friedrich no sobrenome. Conferi na listagem dos alunos. Depois me revelou que descendia de alemães. Os avós paternos se fixaram em Pomerode*, logo que chegaram ao Brasil em 1940. Fugiram, por certo, das perseguições nazistas. Deviam ser judeus. Não procurei saber. Ela desconhecia a política antissemita de Hitler, sem dúvida. E eu não chegaria à irreverência de esclarecer; de falar dos campos de concentração; da eliminação de milhões de ciganos, homossexuais e judeus, tendo quase certeza da sua origem. Seu pai, moço ainda, preferiu viver em Blumenau. Batalhou como garçom e terminou casando com a filha da dona do restaurante em que trabalhava. - Dizem que eu sou a cara da minha mãe. Só sei que ela ainda é muita bonita. Você acredita que, quando ela era assim da minha idade, participou algumas vezes dos desfiles da Oktoberfest? Acreditei. Ariana, para isso, era tímida. Revelou-me. E também que os avós maternos tinham sangue germânico. Parecia-me adulta em tudo, menos nas atitudes e na maneira de se sentar na carteira. Aquilo mexia comigo. Afinal, não sou gay, pô! Estou vivinho da silva! E, como falam por aí, a fruta proibida é mais saborosa. Os seus olhos verdes me fitavam como um desafio. Era um chamamento. Julguei-me assediado. E vaidoso, confesso, preterindo tantos garotões boa-pinta, dali do colégio, e mesmo da sala de aula. Mas, eu não podia ceder um palmo. A minha conduta tinha que ser de bom moço, do gentleman comedido, do educador exemplar. O meu nome não podia ficar em jogo, na mão da molecada, daqueles irreverentes ginasianos. E se a direção do colégio tomasse conhecimento? Pelo amor de Deus! Eu ia pro bé-lé-léo, sem dó e piedade. Adeus contrato. O emprego ia pras cucuias, detonava, ia pelos ares. E logo quando, com aquela política filha da puta, estávamos amargando, só Deus sabe como, de dificuldades em todas as áreas de atividades profissionais, seria uma “gelada”. E o meu “eleitorado” em casa: minha mulher e minha filha? O assédio não partia de mim. Eu estava na minha. Quieto. A iniciativa partia da adolescente, daquela menina com idade de ser minha filha, e que, há bem pouco, devia ter comemorado os seus quinze anos, dançando com o orgulhoso pai a valsa das debutantes. Mas, eu podia cair num ardil. Se fosse agora, podia ser envolvido em crime de assédio sexual, já aprovado no Congresso. Seria até um estuprador involuntário, quem sabe? Era a palavra dela, de uma jovem indefesa contra a de um sujeito maduro, bastante vivido. Eu perderia, com certeza. O diabo, dizem, aparece em figura de gente. E aquele “diabinho” estava ali, na minha frente, me tentando todos os dias. Talvez, nem fosse a sua intenção. Não seriam os incitamentos naturais da adolescência? Quem sabe? E eu imaginando barbaridades... Já estávamos quase no meio do ano letivo. As provocações não paravam. Rasguei vários recadinhos presos em paleta do limpador do para-brisa do meu carro. A nenhum dei resposta. No começo, só pedia carona. Depois foi mais longe. “... Será que você é impotente? Foi operado de próstata?“... “ Por quê não me leva a um motel? Eu dou um jeito. Decida-se...” E outras meninices. As minhas supostas “barbaridades” evidenciavam-se. Não vi outra alternativa, senão entender-me com a direção do colégio e mudar-me para o turno da noite. Livrei-me em parte. Ela transferiu-se para o curso noturno. Mas não encontrou vaga na minha sala, pra meu sossego. O que se passava comigo já era motivo de interrogações da minha mulher. As nossas transas, antes fervorosas, estavam sem graça, da minha parte, claro. Uma ou mais noites cheguei a broxar. As lágrimas de Andréa me tocaram. Eu a amava. E adulterava em pensamento. Desejava morder a fruta proibida de um “paraíso” que me levaria a consequências desastrosas... Era como aquela história da Bíblia. Adão não se conteve diante do corpo escultural de Eva. A primeira mulher, imagino, teria que ser mesmo dotada de predicados físicos excepcionais para atrair, assim, o homem. Ariana era também tentadora, e deve ser ainda, nos seus vinte e poucos anos, agora. E o diabo, metamorfoseado, forneceu todo veneno, o cio necessário que inebriou o primeiro homem. Ariana, como a serpente, também me seduzia; aguçava-me o instinto de macho. Era uma pestinha fogosa, que via em mim, sei lá! Talvez, um cara vivido, responsável, diferente dos pirralhos coleguinhas, que, na sua linguagem, só queriam “ficar”. Pensava que se completaria comigo nos seus anseios. - O que é “ficar”, na linguagem de vocês? Eu quis saber. Ela me explicou uma noite, quando me surpreendeu no pátio do estacionamento do colégio, sentando-se ao meu lado, no banco do passageiro do meu carro. Havia duas maneiras de ficar. Pra uns, era um namorinho despretensioso, de pouca monta, sem futuro, de poucos dias, ou até mesmo de uma noite, quando podiam “rolar” certas intimidades, que culminariam numa “transa”. Isso, geralmente, acontecia no automóvel. Não havia grana para pagar motel. Com camisinhas, pelo menos, se preveniam de doenças e gravidez. Desses preservativos ninguém se descuidava, nem as garotas. Deu-me conhecimento. - Já estou cheia dessa história de ficar, sabe Adriano? Esses namoradinhos babacas, que eu arranjo, só querem comer pipoca no cinema, ou hambúrguer com milkshake no Mc Donald´s. Deu uma parada. Suspirou fundo, olhando-me nos olhos e balançando a cabeça, como se lastimando, e continuou. - Não sabem fazer outra coisa, a não ser uns beijinhos bestas, aguados, uns abraços sem graça, e ponto. Eles gostam mesmo é de encher a barriga de bagulho. - Eu, hein! Rejeitava Ariana, que procurava manter as suas formas evitando massas e fazendo musculação. Falou-me. - No meu tempo de adolescente não havia isso; essa coisa de ficar. É um modo de namorar muito estranho. Concluí. Não lhe faltavam “cantadas” na rua e, principalmente, nos shoppings, que eram a sua “praia”, disse. Mas não se deixava levar. - Muitas das minhas colegas, e amigas mesmo, já deixaram de ser “moças” há muito tempo, sabe? Deixar de ser “moça” é.... - Eu sei! Não precisa explicar. Interrompi. Achei estranha a expressão, usada ainda, ser moça ou não ser moça. Pensei que não se falasse mais nisso, com a liberdade sexual que existe hoje entre os jovens. - E... por quê você ainda é... “moça” ? Fiquei curioso. Ela não titubeou. - Simplesmente porque não encontrei um cara legal que eu gostasse de verdade; um cara adulto, experiente, responsável assim como você, sabe? Encarou-me, quase sem pestanejar. Queria uma resposta. Senti no brilho dos seus olhos verdes. Calei-me por uns segundos, fitando, não só os seus olhos, mas tudo que compunha o seu rosto, que acariciei com as duas mãos. - É... Você vai encontrar muito breve. E fiquei na minha. Era convencida dos seus predicados físicos. Quando não usava minissaia, mostrava as curvas perfeitas do corpo metido numa calça jeans esticadíssima, que eu não sabia como conseguia vesti-la, de tão justa. Os seios pequenos e duros, sem proteção de sutiã, por trás da blusa de tecido muito fino, revelavam uma perfeição. Acho que somente Eva tivesse dotes mais perfeitos. - Boa noite, Ariana! Forcei a barra para que deixasse o automóvel. Mas não fez menção de sair. De blusa de tom cinza e calça escura, justíssima também, que lhe propiciava mais mobilidade nas pernas do que com a minissaia, ajeitou-se no banco, livre já dos sapatos, de exagerados saltos altos e do casaco preto de couro, e procurou olhar-me de frente, olho no olho. Agarrou com a mão direita o meu braço esquerdo que se apoiava no volante. Era quase um abraço. - Só este insosso “boa noite”, Adriano? Interrogou-me com um discreto e suplicante sorriso, como me convidando a tê-la nos meus braços. Aquela noite de maio estava bem fria. E eu não sou de ferro. E quem seria? Pus de lado os conceitos e preconceitos e apertei-a forte nos braços, e senti seus lábios rubros contra os meus, num beijo prolongado, como de despedida. Afastei para trás o encosto do meu banco e procurei trazê-la para mais junto de mim, aquecendo-nos mutuamente. Enquanto nos beijávamos com sofreguidão, minha mão, levemente, escorregava pelo espaço entre dois botões de sua blusa em busca dos seus seios. Ela ofegava descompassadamente, apertando-me o pescoço com a mão direita, cravando as unhas na minha pele. Enquanto eu dedilhava os mamilos enrijecidos, implorou que a fizesse mulher ali mesmo. Era um dos seus desejos perder a virgindade dentro de um automóvel, sussurrou no meu ouvido. Não acreditei. Num esforço sobre-humano, contive-me e afastei-a bruscamente. Lembrei-me, naquele momento, de Letícia, minha filha. - Não, Ariana! Não! Não posso! Não devo! Largou-se abruptamente dos meus braços. Desceu do carro apressada. E sumiu naquela noite fria. Até hoje. Logo depois, mudei-me para Florianópolis. Nunca mais esqueci a sua revolta: - Seu bicha! Seu veado! Seu fresco! Seu filho da p...! Não completou.

(*) Pomerode (SC), onde é grande a concentração de imigrantes alemães.

(Paulo Góes)