segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

                                                       UM PASSO ALÉM

Como outras pessoas, ele também correu para socorrer o atropelado. A aglomeração de curiosos aumentou de repente. E não teve dificuldade de passar entre tanta gente que olhava o corpo estirado no chão, atravessado no meio da rua, manchado de sangue, junto a um automóvel. Era alguém que lembrava ele mesmo, embora o corte na cabeça, de onde escorria uma fita de sangue, modificasse um pouco a fisionomia da vítima.

Com tantos curiosos reunidos, amontoando-se ao redor do corpo, ele se deslocava facilmente, como se levitando estivesse, chegando próximo, frente a frente aos paramédicos que assistiam, apressados, o infeliz desconhecido. Perguntava a um e a outro quem era aquele moço estendido, inerte, no asfalto quente daquela tarde de verão. Ninguém lhe dava ouvidos. Também o burburinho de tantas vozes e mais o soar intermitente da sirene dum carro-ambulância, ali presente, não lhe permitiam qualquer atenção desse ou daquele a quem interrogava. Achava. Mas, mesmo se acotovelando entre os populares, ninguém reclamava dos seus empurrões. Assim, transitando sem esforço nenhum, achou que algo estranho havia acontecido com ele. Não estava na mesma dimensão dos demais, porque se movimentava sem qualquer dificuldade. Era uma sensação de imponderabilidade.

Viu os homens da UTI-móvel acomodarem o corpo do desconhecido numa maca, prendendo-o ali com os cintos de segurança, encaixando aquele pacote na parte de trás do veículo, que, fechadas as portas, partiu em disparada pela avenida que, descongestionada, propiciava ao veículo desenvolver alta velocidade.

Estava sem rumo. Cruzou a via pública várias vezes, achando até graça nele mesmo passando entre os carros em movimento e nada lhe acontecia.

O tempo lhe pareceu parado. A tarde se fora, como observou no céu, que já escuro, cintilavam as primeiras estrelas. Não havia qualquer preocupação em sua mente, nenhum pensamento roubava-lhe a paz, a tranquilidade que experimentava, desde que presenciou o atropelamento daquele que seria seu irmão gêmeo, se assim tivesse nascido. Era celestial o que sentia, como qualificou. Tudo era leve, de uma serenidade inexplicável, observava. A mansidão o transportava a uma planície branca, feita de uma luminosidade fosforescente. Não era igual à luz das lâmpadas incandescentes que se estendiam pela grande avenida da beira-mar. Não havia postes. E daquela claridade intensa surgia uma doce, uma maviosa orquestração, uma sinfonia que lembrava milhares violinos reunidos.

Caminhou, o que não era bem um caminhar, porque os seus passos davam-lhe a impressão de deslizar como um patinador exímio. Era por uma alameda ladeada de grandes árvores, de um verdor intenso, que ele passeava. Procurou encontrar alguém, que logo divisou num largo, feito uma enorme praça. Algumas das pessoas, entre homens e mulheres, lembravam-lhe antigos conhecidos, até mesmo contemporâneos do seu tempo de estudante. Não hesitou e procurou se informar que lugar era aquele, onde reinava um clima diferente, um ambiente feito de suavidade. Não se ouvia barulheira de qualquer espécie. Também não via automóveis, nem ônibus, nem caminhões. Somente pessoas alegres sob uma atmosfera de muita luz e cânticos maviosos. A paisagem, deslumbrante, compunha-se de um ajardinamento que nunca vira antes. As flores, que enfeitavam muitos canteiros, eram multicores e havia, por sobre a relva, repuxos de uma água cristalina que jogava no ar uma espécie de vapor que enchia a atmosfera de um perfume inebriante.

Para sua surpresa, Márcio veio ao seu encontro e o abraçou forte e demoradamente. Quanto tempo, meu prezado amigo! Lastimo que somente agora tenhas chegado!

Cláudio não acreditou que era o colega de outros tempos. Ficou perplexo; quase sem fala. Mesmo assim, arranjou forças e correspondeu àquele amplexo tão sincero. Muito admirado e curioso, quis saber onde estava; que cidade era aquela tão diferente, tão calma, onde tudo funcionava harmoniosamente. Perguntou e, atento, ficou a ouvir.

- Cláudio, este lugar, ou melhor, esta dimensão não tem uma denominação específica como as cidades, vilas e vilarejos do plano inferior, onde nascemos, donde, há pouco, tu chegaste. Certo? Alguns dos nossos, esses que já vivem aqui, às vezes, brincando, chamam este espaço, este lugar de “Nossa Aliança”, de “Luz de Esperança”, de “Fonte de Amor” e outros tantos títulos. Mas tudo sem qualquer registro definitivo. E nós todos, como bem vês, estamos nos preparando, digo melhor, purificando-nos dia a dia para a tão esperada volta do Senhor, que nos julgará. E quando isso acontecer, que não vai demorar, os escolhidos ficarão à Sua direita, posição essa que todos nós almejamos. Os demais, só Ele saberá o destino...

- E como é que eu vim parar aqui? Interrogou ao colega, a quem não via há muitos anos, desde que se separaram, quando cursaram e terminaram juntos o ginasial, numa cidade do Nordeste. Cláudio, logo depois, foi embora para o Sul.

- Ainda não está fácil entenderes o que te aconteceu. Ponderou Márcio. Mas, vou tentar te explicar. Presta atenção! Assim como um piloto desses modernos aviões de combate, que chamam de “caças”, que é ejetado, quando o aparelho sofre uma pane no ar, ou mesmo quando atingido em combate; do mesmo jeito tu foste arrancado, provisoriamente, do invólucro, deste envoltório material que forma o teu corpo. Aquilo já não valeria mais nada, se este teu momento tivesse chegado. Se fosse a tua hora de vir para cá. Aquela composição de células, ossos e medulas, que fabricavam sangue para o teu cérebro e o teu coração, dando-te assim os teus movimentos e ações, deixaria de existir. Nada mais se aproveitaria do que constituía o teu ser humano. O material que levaram naquele carro era o teu corpo quase sem vida, quase imprestável, que voltaria para a terra, se tua morte tivesse acontecido de verdade, transformando-se em pó. Mas isso não aconteceu. Estás aqui por uns instantes. Aliás, em Gênesis 3:19, o primeiro livro da Bíblia, não sei se conheces, está bem claro e diz assim: “Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; pois és pó, e ao pó tornarás”.

Cláudio estava atônito diante do que via e, principalmente, do que ouvia daquele colega e amigo de longa data. E quis saber.

- Quer dizer que agora eu sou um espírito? Não acredito, porque me sinto a mesma para se viver. Essa paz, essa música e a compreensão notável entre vocês não existem lá embaixo, onde os homens não se entendem. Não! Não quero regressar àquele mundo de contrariedades, de violência, de inveja, de mentiras, de contendas intermináveis! Ali já vivemos o Apocalipse de João Evangelista! Deixe-me ficar, pelo amor de Deus!

Com tristeza, e até lacrimejando, Márcio finalizou:

- A tua hora ainda não é chegada. Sofreste um acidente. Mas não te separaste ainda da matéria, do teu corpo de carne e osso. Para onde te conduziram, constataram que o teu coração não tinha parado e te transferiram para um hospital. Estavas em estado comatoso. Entre a vida e a morte material. Espero que me entenda. Sabemos que deste um passo além. Mas tens que regressar, lamento. A ordem não parte de mim. A determinação vem de outra dimensão, bem superior a que estamos agora.

A sala de UTI, repleta de aparelhos, muitos computadorizados, surpreendeu Cláudio, que acordava do coma de mais de um mês, no leito de um hospital do subúrbio, recebendo um largo sorriso de uma enfermeira, ficou surpreso. Ali ainda permaneceu por alguns dias, talvez até revoltado porque, logo, enfrentaria esta vida, com as suas injustiças, os dissabores, o desamor que, infelizmente, ainda existem neste mundo material que Deus nos deu.